sexta-feira, agosto 31, 2007

D.

Pode-se dizer que o maior problema de D. é a culpa. Ela carrega um peso enorme nas costas, por isso a postura curvada. São culpas de todos os tipos, individuais e coletivas, brandas e pesadas, certas e duvidosas. Culpas que ela não sabe nem se deveria sentir, mas sente. É um problema crônico.

Culpa-se por ter nascido na hora errada. Ou por se esconder quando o mundo pede que todos se mostrem. Não se acha uma boa filha, uma boa irmã. Muito menos, boa amiga ou namorada. Estas são as individuais. Ainda tem as coletivas...

D. abre os jornais e não resiste às tragédias do mundo. Culpa-se pelos acidentes que matam milhares todos os dias, pela pobreza e indignidade que se alastram, pelos bebês e crianças de vida curta, pelos animais que sofrem nas mãos de carrascos. Todos eles parecem dizer a ela: “Aproveite a vida enquanto é tempo, D.! Pare de chorar!”. Mas D. chora demais. E quanto mais chora, mais se culpa. E quanto mais se culpa, mais lágrimas rolam, num ciclo vicioso que a faz pôr em dúvida a razão de sua existência.

Às vezes, tem ímpetos de sair da inércia e salvar o mundo, colocar todos sob seus cuidados. Outras, prefere fugir sozinha para o meio do nada, longe dos homens cínicos, aninhando-se na pureza dos animais, que nunca lhe fizeram mal.

Mas D. escolhe a inércia. Escolhe o namorado sádico, que lhe bate todas as noites. A cada tapa desferido por G., D. vibra, pois sente-se punida por tudo o que deveria fazer e não fez.

domingo, agosto 12, 2007

G.

Quando estava de mau humor, G. fazia pouco do resto da humanidade. Podia estar dentro de um ônibus, tão apertado e espremido quanto os outros passageiros, mas olhava com desprezo para os que liam. “Esse povo só lê Bíblia ou livro de auto-ajuda”. Se estava sozinho num banco, torcia o nariz se alguém sentasse ao seu lado. “Tanto lugar vazio...”. Pior ainda se puxassem assunto. Geralmente eram velhinhas carentes ou moças simpáticas com cara de manicure. “Não quero ser seu amigo, idiota”, rosnava, em pensamento.

Andar na rua também o irritava. Transeuntes que esbarravam, gente que andava devagar, gente que andava rápido. Mas o pior para G. era quem andasse ao seu lado. Na mesma linha, quase combinando os passos. Um comichão lhe tomava conta do corpo e ele apressava ou atrasava a caminhada, para se distanciar do companheiro desconhecido.

Fila do caixa eletrônico. Outro problema para ele. Sempre tinha um que errava a senha ou outro que levava mil contas para pagar de uma só vez. Horas de espera. “Malditos”.

Assim era G. de mau humor. E olha que isso era comum. Mas o curioso de tudo isso é que ninguém, nunca, percebeu isso. G. era popular, rodeado de amigos. Doce, alegre, simpático. Incrivelmente ... Bem-humorado. Figura complexa, esse G.

Só quem sabia do mau humor de G. era a namorada, D. A coitada apanhava dia sim, dia não. Como se G. descontasse seu desprezo e ojeriza pelo mundo em belos e bem dados tapas na moça. Bem, eles estão juntos há alguns anos. D. deve gostar.

Mas isso já é outra história.