quinta-feira, outubro 30, 2008

Caro senhor Carlos

Duas noites já se passaram e já não durmo. Não sei por onde anda, o que faz e com quem. Talvez com quem eu imagine, e é por esse com quem por que não durmo. Só esta noite tomei nove pílulas de dormir, senhor Carlos. Nove. E mantenho-me de olhos abertos, insuportavelmente ardidos, esperando algum sinal de vida seu. Arrependo-me amargamente daquele malfadado feriado que nos conhecemos mais intimamente. Senhor Carlos. Ah, se o senhor soubesse. Você soubesse. Não sei por que voltei a lhe chamar de senhor, só porque está há dois dias desaparecido. Ainda continuam seus resquícios existindo no meu quarto, nossa intimidade ainda cheira em meu travesseiro. E suponho que, neste momento, esteja com aquela mulher, a quem você, ou melhor, o senhor (me sinto tão distante) disse amar para sempre. Ah, senhor Carlos, se soubesse o quanto ela vale. Essazinha tem outros homens. Dez, vinte, em apenas uma semana, senhor Carlos. E eu aqui, devotando-lhe todo o meu amor e fidelidade, ainda que não exista nada oficial entre nós. Mudei minha vida pelo senhor, senhor Carlos. Portanto, peço encarecidamente que me retorne esta carta. Nem que seja para dizer que me esqueceu de uma vez, que esqueceu daquele nosso feriado maravilhoso em Miguel Pereira. Ah, Carlos, eu lembro como se fosse hoje. Você foi tão carinhoso... Senhor Carlos, pelo amor de Deus, não me deixe! O desespero me toma de assalto e me coloca tão inferior que, para mim, você voltou a ser senhor.

 

Rodney

sábado, outubro 25, 2008

Febre

Eram dez horas quando ele entrou no quarto dela. “Hora do remédio”, disse. Um tanto sonada, ela somente assentiu com a cabeça. Tomou a medicação e fechou os olhos, achando que o médico sairia do quarto. No fundo, queria que ele ficasse, estava tão sozinha naquele hospital. Além do mais, ele era bonito. Mesmo que não fosse, estava de uniforme branco e isso acabava com qualquer possibilidade de imperfeição. 

Silêncio. Achou que tivesse ido embora. “Agora sente-se, mantenha os olhos fechados e abra os braços”, ele disse. Ainda estava lá. Talvez tenha ficado para fazer exames extras. Ela o obedeceu e então sentiu um abraço masculino forte. De jeito algum, aquilo não era exame. Médico e paciente abraçados num quarto de hospital. E se uma enfermeira entrasse? E se julgassem mal aquele encostar de corpos, que era nada além do que um simples abraço? 

Não era tão simples assim. Ele roçou os lábios nos ouvidos dela. “Não consigo resistir”. Um médico sussurrando em seu ouvido. Ele a estava desejando, ela era uma paciente, como isso era possível? Um rubor subiu-lhe a face, um calor incontrolável lhe acendeu. Começou a mordiscar o pescoço dele, um pescoço de médico. Abriu os olhos e o viu em transe. Com sua roupa branca, indefeso perante os lábios e dentes da paciente. A médica agora era ela e iria cuidar daquele homem enfermo, apaixonadamente doente. 

Deitou-o no leito, tirou-lhe o uniforme branco, beijou-o por inteiro, até que ele tremeu. O quarto estava quente, ambos pingavam de suor, poucos minutos e uma enfermeira entraria com a comida. A médica não se importou com o risco, tampouco o paciente nu e sedento. Mas a enfermeira entrou, acendeu a luz e viu: a pobre paciente delirando e gemendo, talvez febril, talvez só sonhando. 

Quando acordou e viu a enfermeira intrigada em sua frente, a paciente teve raiva do médico que não estava ali, nunca esteve e provavelmente nunca estaria.

sexta-feira, outubro 17, 2008

With english subtitles

When you don't understand a language, what do you do?
Open your ears near the people?
Try to pretend that you're like them?

When you feel strange in a place that's not yours
Do you play Pollyana, making the happy game?
Do you stop complaining and keep your mouth shut?
Do you speak different so people can not understand what you're saying?

When you feel some kind of insanity growing up to your head,
You admit: I'm crazy? Or simply keep your soul beyond everything?

And when everything is so stupid that you just can't manage?

quarta-feira, outubro 08, 2008

Sobre jabuticabas

Quando o estrondo no céu cinza caiu em forma de chuva, refugiou-se na imensa tenda de um jornaleiro. A água inundou a Paulista, obrigando-a a se distrair com revistas de mulherzinha na prateleira. Só bobagens. E ela não estava para frugalidades nesse dia. Parou no estande de pocket books – sempre teve mania de comprá-los e nem sempre os leu – e se deparou com um Schopenhauer: “Como escrever bem”. Lembrou-se da paixão de um amigo pelo filósofo e resolveu comprar o livro. Só não começou a deleitar-se ali mesmo pois um homem vendendo jabuticabas parou em sua frente. Pretas e redondas como seus olhos nunca serão, as frutas estavam salpicadas de chuva, frescas e convidativas. Comprou meio copo, engoliu três bolinhas e ganhou coragem para enfrentar o aguaceiro. Comendo jabuticabas na Paulista, nunca pensou que faria isso um dia. Caminhou da Brigadeiro à Consolação, reparando nos estranhos, nas hordas de engravatados e mulheres de terninho. Ficou feliz de não estar vestindo um. Resolveu descansar num café. Pediu um frapuccino e sentou-se para ler seu Schopenhauer. À sua frente, um homem de aparência humilde lia o jornal Agora. Ele não tinha dentes. Ficou com pena, a princípio. Depois, achou-se ridícula por ter pena de um homem só porque ele não tinha dentes e lia um jornal popular. Ela não era melhor que ele. Era apenas uma metida que lia Schopenhauer. Convenceu-se mais ainda de sua arrogância ao chegar na página 20 do livro. “Diante da imponente erudição de tais sabichões, às vezes digo para mim mesmo: Ah, essa pessoa deve ter pensado muito pouco para poder ter lido tanto!”. Era um recado do filósofo, que ficou dançando zombeteiro em sua mente. Isso lhe gerou uma série de pensamentos desconexos, tão côncavos e convexos que nem Roberto Carlos poderia explicar. Pensou que durante sua vida não teve muitos pensamentos válidos. Pensou que perdeu tempo com besteiras. Pensamentos imperfeitos e vastas emoções. Pensou que ainda não leu este livro. Pensou que estava ficando louca e disse a Schopenhauer – em pensamento, claro – que pensar muito pode ser bom, mas às vezes é melhor ocupar a cabeça com livros do que com idéias esdrúxulas. Olhou para frente e viu o homem sem dentes sorrindo com as páginas do Agora. Por um momento, teve ímpetos de trocar seu livro pelo jornal. Queria rir também. “Quebre-me os dentes”, ela quase disse. Lembrou-se das jabuticabas. Sem a menor classe, sacou o plástico da bolsa. Decidiu saborear as frutinhas. Até que sentou um engravatado no sofá ao lado. Ele lia o Código Civil. Não! Melhor Schopenhauer, melhor o Agora, melhor as jabuticabas na chuva. Melhor o pensamento livre, seja por excesso ou ausência. Melhor parar de escrever.