Cansada de encará-la no espelho, amarrei-a na cadeira do
quarto e dei três nós bem apertados.
“Isso não vai adiantar, você sabe”, ela disse, rindo
ironicamente na minha cara assustada.
Pela primeira vez na vida fui forte e a deixei lá,
gargalhando às minhas custas, sussurrando minhas fraquezas com conhecimento de
causa, jorrando por seus olhos o poder de me hipnotizar e petrificar.
Mas, não. Pela primeira vez, não me hipnotizei, me livrei
das garras, deixei-a sozinha presa naquelas cordas porcamente amarradas com
os nós de escoteiro que aprendi com meu pai.
Desci as escadas vermelhas do quarto mofado e pela primeira
vez respirei. O peso havia deixado meu peito e me sentia tão leve que era capaz
de planar pela praça. Sobrevoando as famílias felizes com suas crianças coradas,
os velhinhos orgulhosos de seu passado jogando gamão com seus pares, os
saudáveis desintoxicados correndo em volta do parque. Sempre os invejei, todos
esses seres extremamente felizes, the grass is always greener, ela me dizia em
seus tempos opressores.
Mas, agora, livre, posso ser feliz como eles. Não posso? Sem
a consciência pesando 100kg, o medo da opinião alheia, a alegria vinda da
ignorância. Porque nada como a ignorância para beatificar uma existência, nada
como o nada. Questionamentos não levam a lugar algum.
Estava nua naquela praça ensolarada, sentindo-me pela
primeira vez melhor do que a família corada, do que a velhinha da dentadura
lustrada, do que a jovenzinha de bunda empinada. Eu era melhor, pela primeira
vez despida da outra, da louca presa na corda com três nós porcamente
amarrados. Ela poderia facilmente se soltar, desceria as escadas vermelhas com
furor e me possuiria com o ódio vingativo dos traídos.
Pois eu nunca a deveria tê-la amarrado, ela que nasceu
comigo e comigo cresceu, que mostrou suas garras desde aquele recreio no
colégio quando a menina quis lanchar
comigo e eu disse: ‘quero ficar sozinha’. Como pode, eu era tão pequena
e já queria o vazio, já queria a solidão masoquista. Era ela, naquele momento,
mostrando suas então pequenas garras, que me aprisionariam por toda a vida.
E agora eu estava livre. Estava?
Estava feliz por estar livre. Estava?
Após um dia de pseudolucidez, subi as escadas vermelhas,
entrei no cômodo mofado e ela estava lá, com o olhar triufante, já sabia desde
o início que eu iria voltar.
“Me desamarra, vadia”.