terça-feira, junho 23, 2009

Dentes

“Olhe bem pra mim, como estão meus dentes?”. Suzana abria o bocão para Carlitos. Ele olhou e fez cara de lástima. “Estão podres, Suzana”. Ela não se conformou. “Podre é você, Carlitos”.

Suzana sabia que só seria aceita no emprego de copeira se estivesse com os dentes em ordem. A época dos escravos já havia acabado há várias décadas, mas o hábito de examinar a arcada dos empregados ainda persistia em algumas fazendas.

Pegou um espelho pequeno, enfiou-o na boca e mirou-se no espelho grande do banheiro. Sim, estavam podres os dentes, as carnes em volta dos dentes, o hálito vindo da garganta. Desesperou-se.

“Faça bochecho com água sanitária. Você vai sorrir marfim”, disse Cotinha, uma moça da qual Suzana não gostava muito, durante um bate-papo na beira do riacho. “Acha que sou doida? Você quer é me ver desdentada”. Cotinha deu de ombros.

Andando para casa, a trouxa de roupa lavada na cabeça, Suzana decidiu seguir o conselho de Cotinha. “Pior do que está não pode ficar”. Já dentro do banheiro, Suzana mirou-se no espelho. Tinha um copinho de água sanitária nas mãos. Bochechou tudo de uma vez.

Lá de fora, Carlitos ouviu o grito alucinado da mulher. Encontrou-a no banheiro, quase sufocada, com as mãos na garganta. “Á...gua”, ela esforçou-se para dizer. Segundos depois, Suzana despejava sobre a boca a garrafa d’água levada pelo marido.

Não foi preciso muito tempo para a pobre moça perder todos os dentes. Cada dia acordava com um sobre o travesseiro. “Aquela Cotinha... Aquela sem-vergonha...”, chorava Suzana. “Ninguém mandou seguir conselho do inimigo, mulher”. Carlitos não dava colher de chá. O tempo passou e ela ficou banguela, banguelinha mesmo, como um bebê recém-nascido.

Mas, como diria a bisavó, avó, a mãe e a própria Suzana, há males que vêm para bem. O ano seguinte foi de eleições e naquela época políticos gostavam muito de dentadura. A troco de um voto, Suzana ganhou dentes novos e foi exibi-los em uma fazenda que contratava copeiras. Conseguiu o trabalho, e ficou conhecida na casa por suas largas e divertidas gargalhadas.

quarta-feira, junho 17, 2009

Dois goles

Sentou-se na mesa de bar sozinha.

“Dois chopes”.

“Sim, senhora. Os dois agora?”, estranhou o garçom.

“Sim”.

Minutos depois ele colocava dois cremosos lourinhos em sua mesa.

“Brinda comigo?”, pediu ela.

“Dona, estou trabalhando. Não posso beber”.

“Só um brinde. Não precisa beber. É que dá azar beber sem brindar”.

O garçom olhou para os lados. O chefe, Seu Gumercindo, não estava por perto.

“Tim-Tim”. Ambos bateram as tulipas.

“Toma um golinho”.

“Senhora, eu preciso atender outras mesas...”

“O bar está praticamente vazio. Tem mais garçom que cliente”.

“Mesmo assim. Pega mal. Não posso beber em serviço”.

“Me sinto tão só...”, ela suplicou. Olhou o crachá do homem. “Bebe um golinho, Ulisses. Por mim, vai”.

O garçom respirou fundo. Sabia que não podia. Mas a moça era bonita...

“Viu? Um golinho só. Ninguém sabe, ninguém viu”, disse ela, vendo Ulisses limpar o bigode de espuma em cima do lábio.

Seu Gumercindo apareceu no balcão. Ulisses se aprumou.

“Ok, senhora. Qualquer coisa, pode me chamar. Vou continuar meu serviço”.

Ela seguiu bebendo sozinha. Viu Ulisses entrar e sair da cozinha. Ele não tinha o que fazer.

“Ei! Por favor!”, chamou ela. “Uma porção de batata-frita”, pediu, quando Ulisses se aproximou.

Minutos depois, chegou a porção. Quentinha, crocante.

“Prova, Ulisses. E toma outro gole”.

“Dona... A senhora vai me complicar”.

Ulisses colocou três batatas na boca de uma só vez. Um gole rápido de chope ajudou a maçaroca a descer.

“Não vai perguntar meu nome? Eu digo ‘Ulisses’ e você responde ‘Dona’?”

“Qual a sua graça?”. Ele a olhava com interesse.

“Odineide. Mas pode me chamar de Dina”.

“Dina eu gosto. Combina com... piscina”. Ulisses era mesmo sem jeito.

“E também com morfina, cartolina, anilina... Senta um pouco comigo.”

Dina sabia que Ulisses não podia. Mas ele a surpreendeu com um convite.

“Já deu minha hora, vou bater o cartão. Eu não posso beber aqui, mas... A senhora não quer ir lá na outra esquina, Dina?”. Ele riu com a própria rima involuntária.

“Está bem”, disse a moça, bebendo o resto do chope.

Minutos depois ele saiu, perfumado e sem uniforme de garçom.

Vendo-os descer a rua de mãos dadas, Seu Gumercindo sorriu.

“Há 20 anos eles fazem a mesma coisa. E Ulisses nunca percebeu que eu sei que ele bebe”.

“E o senhor não faz nada por quê?”, perguntou um garçom.

“Porque ele só bebe com a Dina. E são sempre dois goles. Um amor bonito desses... Pra que interromper?”.

segunda-feira, junho 08, 2009

Cuen!

Descobrir o não-talento para alguma coisa é uma forma de amadurecimento.
Diminuem cobranças. A pressão de si para si.
Entender que o caminho seguido não foi o ideal, mas nem por isso inútil, diminui sentimentos culposos.
Ir atrás do que se acha certo é válido em qualquer altura da vida.

Escrever frases cafonas quando a criatividade anda em baixa: é um direito.
E tenho dito!