quinta-feira, dezembro 18, 2008

A Rainha Muda

Chamava-se Jeanne. Na verdade era Janete, mas poucos sabiam seu verdadeiro nome. Jeanne sempre foi Jeanne, desde os 15 anos, quando viu “Jules et Jim” pela primeira vez e apaixonou-se por Moreau. Foi morar sozinha num sobrado velho da Lapa e, ainda adolescente, caiu na noite. Batia ponto na Les Mistons e era conhecida como a Rainha Muda. Cheirava a ylang-ylang e Amarula. E só amava de olhos fechados ouvindo Miles Davis. 

Toda noite, obedecia a um ritual próprio, que ficou conhecido e respeitado ao longo dos anos. Aparecia com um vestido de noiva preto, cigarrilha na mão e expressão indecifrável. Pedia um copo de Amarula e sentava-se na mesa 5. Permanecia sozinha por quase uma hora, tomando doses e doses. Ninguém sentava na mesa 5 a não ser que Jeanne chamasse com os olhos. 

Os fregueses, nas mesas em volta, aguardavam o olhar de medusa que iria transformá-los em pedra. E uma vez escolhidos, eles eram abduzidos para sempre, voltando noite após noite, querendo mais. 

No quarto, Miles na vitrola, fumaça de cigarro, cliente gemendo e Jeanne em outro mundo. Estava longe, nas ruas chuvosas de Paris, entediada à espera de qualquer coisa para lhe entreter. Como era doce estar entediada em Paris. 

Mas era Lapa, e os clientes não sabiam onde estava Jeanne. Pouco importava. Apesar de distante, ela também estava ali, dialética, tratando de seus homens como se fossem os primeiros, como uma virgem lânguida que não era há tempos e como Moreau nunca havia sido. Eles eram tudo para ela e ao mesmo tempo ninguém. 

O ylang-ylang da pele e o hálito de Amarula lhe davam certo ar misterioso, um noir saltando-lhe dos olhos. Quem era Jeanne? Os fregueses queriam saber. Eles a idolatravam. Ela não era deste mundo, muitos diziam, Jeanne não pode ser como os outros.

domingo, dezembro 07, 2008

Hoje eu atirei numa pessoa

Hoje eu atirei numa pessoa

Estava úmido, eu lembro, estava frio

Ele era asqueroso e ameaçador

Não lembro de seu rosto nem da voz

Somente do impacto das balas saindo do meu revólver

Foram quatro, talvez cinco

E dos buracos de sangue escorreram filetes

Acho que o matei

Mas sigo sem saber por que atirei

Ele ameaçava alguém que eu gostava

Não lembro de seu rosto nem da voz

Somente que eu amava e por esse amor matava

De súbito, acordei.

terça-feira, dezembro 02, 2008

Preferimos Toddy

A vida tem seus momentos de comercial de margarina, principalmente se o dia está ensolarado e cachorrinhos saltitam nas calçadas. É uma atmosfera especial que não se explica. Simplesmente as pessoas sorriem, as crianças brincam, todos se cumprimentam e parecem emanar uma energia positiva. Aquela música serena, papais e mamães passando manteiga/margarina na torrada. “Ohs” e “Ahs”. Sucrilhos na tigela e lindos mamõezinhos papaya com granola.

Mas dias de comercial de margarina são raros. O mais comum é o maldito cinza sobre as cabeças estressadas, os esbarrões e xingamentos nada amigáveis. Pessoas que gostam de Nescau brigam com os que preferem Toddy. Ninguém diz “bom dia” no elevador. Até os cachorros parecem rosnar, ou então sofrem com o desapego humano pelos seres pulsantes.

Pelo menos hoje o dia amanheceu amarelinho, queimando mansinho, cedinho, cedinho. Deu para colocar a sandália, o vestido e sorrir para o vizinho que abriu a porta ao mesmo tempo. Deu para assobiar até o metrô, feliz, pensando que o amor também adora Toddy. Que bom que preferimos Toddy. Mas em dias de comercial de margarina, também não seria grande problema se alguém pedisse Nescau.

segunda-feira, novembro 17, 2008

Big T. strikes again

Esfomeado de marca maior, T. cresceu acreditando que conseguiria aplacar o vazio de sua alma com comida. Acordava e dormia pensando em comer. Sentia dor e comia. Gozava e comia. Qualquer sentimento, bom ou ruim, que perpassasse seu ser era imediatamente seguido de comida.

Como acontece com todos os seres humanos, a carência da alma foi crescendo em T., com o passar do tempo. Resolveu aventurar-se pelo mundo em busca de novos sabores que o preenchessem. Passou por países diversos, continentes e ilhas perdidas no nada. Realizava o ritual de comer 24 horas sem parar tudo o que o lugar tinha para oferecer. Mas toda a comilança era tão inútil como a maioria das sessões de análise por que passou. T. começou a descer fundo em sua jornada ao inferno.

Doente, carente, anti-social, T. cresceu em angústia e volume. Nos lugares por onde passava, era chamado de Big T. Todos zombavam de sua figura decrépita. Um sentimento de ódio ao mundo fez nascer nele o desejo por sangue. Mais precisamente, carne. Em uma discussão com um inglês mau-caráter, perdeu o controle e devorou-o por completo. Foi a glória de Big T., que finalmente sentiu preenchido parte do seu vazio impreenchível.

Voltou a rodar mundo, com o atropofagicanibalismo pulsando em seus dentes enormes e tortos. Imbuído do desejo de comer e ao mesmo tempo salvar o mundo da peste humana, passou a traçar todos os que julgava ignorantes. Ricos e egoístas? T. devorava. Assassinos de crianças? T. estraçalhava. Mentirosos, larápios, mendigos? Big T. não perdoava. A escória da humanidade estava sendo varrida do mapa pelo apetite voraz de um louco.

Quem ousava reclamar? Big T. era um freak, todos o temiam, mas estava fazendo um grande bem à raça. Era só não deixá-lo sair do controle. Um dia, porém, T. acordou de ovo virado. Abriu sua enorme boca em direção ao mundo e...

domingo, novembro 02, 2008

No future, no future

Presa na torre de silêncio ensurdecedor, tal qual uma Rapunzel descabelada, ela guarda dentro de si o ódio e a angústia. As paredes de onde vive são de papel, a arte é ridicularizada, os livros são de auto-ajuda e o humor, sarcástico. Insuportáveis conversas a forçam sorrir amarelo, bons dias, boas tardes e boas noites falsamente amáveis escondem o desejo pelo grito. Libertem-se! Movam-se! Desburocratizem-se! Na torre de silêncio a vida é chata e inútil, o tempo é fardo, a regra é lei, o marginal, proibido. Rapunzel tenta, por vezes, jogar as tranças pela janela, mas os cabelos quebradiços não sustentam nem o peso de si mesmos. Olhar para o horizonte? Jamais. A paisagem futurista-retrô-sufocante faz as paredes de papel não parecerem tão ruins assim.

quinta-feira, outubro 30, 2008

Caro senhor Carlos

Duas noites já se passaram e já não durmo. Não sei por onde anda, o que faz e com quem. Talvez com quem eu imagine, e é por esse com quem por que não durmo. Só esta noite tomei nove pílulas de dormir, senhor Carlos. Nove. E mantenho-me de olhos abertos, insuportavelmente ardidos, esperando algum sinal de vida seu. Arrependo-me amargamente daquele malfadado feriado que nos conhecemos mais intimamente. Senhor Carlos. Ah, se o senhor soubesse. Você soubesse. Não sei por que voltei a lhe chamar de senhor, só porque está há dois dias desaparecido. Ainda continuam seus resquícios existindo no meu quarto, nossa intimidade ainda cheira em meu travesseiro. E suponho que, neste momento, esteja com aquela mulher, a quem você, ou melhor, o senhor (me sinto tão distante) disse amar para sempre. Ah, senhor Carlos, se soubesse o quanto ela vale. Essazinha tem outros homens. Dez, vinte, em apenas uma semana, senhor Carlos. E eu aqui, devotando-lhe todo o meu amor e fidelidade, ainda que não exista nada oficial entre nós. Mudei minha vida pelo senhor, senhor Carlos. Portanto, peço encarecidamente que me retorne esta carta. Nem que seja para dizer que me esqueceu de uma vez, que esqueceu daquele nosso feriado maravilhoso em Miguel Pereira. Ah, Carlos, eu lembro como se fosse hoje. Você foi tão carinhoso... Senhor Carlos, pelo amor de Deus, não me deixe! O desespero me toma de assalto e me coloca tão inferior que, para mim, você voltou a ser senhor.

 

Rodney

sábado, outubro 25, 2008

Febre

Eram dez horas quando ele entrou no quarto dela. “Hora do remédio”, disse. Um tanto sonada, ela somente assentiu com a cabeça. Tomou a medicação e fechou os olhos, achando que o médico sairia do quarto. No fundo, queria que ele ficasse, estava tão sozinha naquele hospital. Além do mais, ele era bonito. Mesmo que não fosse, estava de uniforme branco e isso acabava com qualquer possibilidade de imperfeição. 

Silêncio. Achou que tivesse ido embora. “Agora sente-se, mantenha os olhos fechados e abra os braços”, ele disse. Ainda estava lá. Talvez tenha ficado para fazer exames extras. Ela o obedeceu e então sentiu um abraço masculino forte. De jeito algum, aquilo não era exame. Médico e paciente abraçados num quarto de hospital. E se uma enfermeira entrasse? E se julgassem mal aquele encostar de corpos, que era nada além do que um simples abraço? 

Não era tão simples assim. Ele roçou os lábios nos ouvidos dela. “Não consigo resistir”. Um médico sussurrando em seu ouvido. Ele a estava desejando, ela era uma paciente, como isso era possível? Um rubor subiu-lhe a face, um calor incontrolável lhe acendeu. Começou a mordiscar o pescoço dele, um pescoço de médico. Abriu os olhos e o viu em transe. Com sua roupa branca, indefeso perante os lábios e dentes da paciente. A médica agora era ela e iria cuidar daquele homem enfermo, apaixonadamente doente. 

Deitou-o no leito, tirou-lhe o uniforme branco, beijou-o por inteiro, até que ele tremeu. O quarto estava quente, ambos pingavam de suor, poucos minutos e uma enfermeira entraria com a comida. A médica não se importou com o risco, tampouco o paciente nu e sedento. Mas a enfermeira entrou, acendeu a luz e viu: a pobre paciente delirando e gemendo, talvez febril, talvez só sonhando. 

Quando acordou e viu a enfermeira intrigada em sua frente, a paciente teve raiva do médico que não estava ali, nunca esteve e provavelmente nunca estaria.

sexta-feira, outubro 17, 2008

With english subtitles

When you don't understand a language, what do you do?
Open your ears near the people?
Try to pretend that you're like them?

When you feel strange in a place that's not yours
Do you play Pollyana, making the happy game?
Do you stop complaining and keep your mouth shut?
Do you speak different so people can not understand what you're saying?

When you feel some kind of insanity growing up to your head,
You admit: I'm crazy? Or simply keep your soul beyond everything?

And when everything is so stupid that you just can't manage?

quarta-feira, outubro 08, 2008

Sobre jabuticabas

Quando o estrondo no céu cinza caiu em forma de chuva, refugiou-se na imensa tenda de um jornaleiro. A água inundou a Paulista, obrigando-a a se distrair com revistas de mulherzinha na prateleira. Só bobagens. E ela não estava para frugalidades nesse dia. Parou no estande de pocket books – sempre teve mania de comprá-los e nem sempre os leu – e se deparou com um Schopenhauer: “Como escrever bem”. Lembrou-se da paixão de um amigo pelo filósofo e resolveu comprar o livro. Só não começou a deleitar-se ali mesmo pois um homem vendendo jabuticabas parou em sua frente. Pretas e redondas como seus olhos nunca serão, as frutas estavam salpicadas de chuva, frescas e convidativas. Comprou meio copo, engoliu três bolinhas e ganhou coragem para enfrentar o aguaceiro. Comendo jabuticabas na Paulista, nunca pensou que faria isso um dia. Caminhou da Brigadeiro à Consolação, reparando nos estranhos, nas hordas de engravatados e mulheres de terninho. Ficou feliz de não estar vestindo um. Resolveu descansar num café. Pediu um frapuccino e sentou-se para ler seu Schopenhauer. À sua frente, um homem de aparência humilde lia o jornal Agora. Ele não tinha dentes. Ficou com pena, a princípio. Depois, achou-se ridícula por ter pena de um homem só porque ele não tinha dentes e lia um jornal popular. Ela não era melhor que ele. Era apenas uma metida que lia Schopenhauer. Convenceu-se mais ainda de sua arrogância ao chegar na página 20 do livro. “Diante da imponente erudição de tais sabichões, às vezes digo para mim mesmo: Ah, essa pessoa deve ter pensado muito pouco para poder ter lido tanto!”. Era um recado do filósofo, que ficou dançando zombeteiro em sua mente. Isso lhe gerou uma série de pensamentos desconexos, tão côncavos e convexos que nem Roberto Carlos poderia explicar. Pensou que durante sua vida não teve muitos pensamentos válidos. Pensou que perdeu tempo com besteiras. Pensamentos imperfeitos e vastas emoções. Pensou que ainda não leu este livro. Pensou que estava ficando louca e disse a Schopenhauer – em pensamento, claro – que pensar muito pode ser bom, mas às vezes é melhor ocupar a cabeça com livros do que com idéias esdrúxulas. Olhou para frente e viu o homem sem dentes sorrindo com as páginas do Agora. Por um momento, teve ímpetos de trocar seu livro pelo jornal. Queria rir também. “Quebre-me os dentes”, ela quase disse. Lembrou-se das jabuticabas. Sem a menor classe, sacou o plástico da bolsa. Decidiu saborear as frutinhas. Até que sentou um engravatado no sofá ao lado. Ele lia o Código Civil. Não! Melhor Schopenhauer, melhor o Agora, melhor as jabuticabas na chuva. Melhor o pensamento livre, seja por excesso ou ausência. Melhor parar de escrever.

sábado, setembro 20, 2008

“As pessoas enlouquecem calmamente…”

Vive entre os loucos
De pedra, do metrô, das avenidas
Gesticulantes, ameaçadores
Loucos de bebida
Loucos de cabeça – ruim ou boa
Eles a querem
Perseguem seus passos
Xingam-na nas plataformas
Apontam o dedo contra ela, que se encolhe
Devem pensar:
“Lá se vai uma louca que pensa ser normal”
Se soubessem que ela sabe
Que no fundo, é como eles
Só ainda não perdeu o último parafuso
Que, aliás, anda frouxo, frouxo
Talvez prestes a cair no ralo
Esvaindo-se na água junto com o fiapo de sanidade que lhe resta

segunda-feira, setembro 08, 2008

Era uma vez no Cine Cafofo

De repente Melissa estava ali, sentada no banco da frente do táxi, com o motorista apertando-lhe as pernas. Começava a sair de um intenso estado de inebriedade, que teve início horas antes, em uma festa mofada de Laranjeiras.

Festa mofada sim, num buraco quente qualquer atrás de um hortifruti, conhecido como Cine Cafofo. A sessão era de “Era uma vez na América”, mas só conseguiu ver a primeira hora do filme. Logo tinha saltado para o bar, estava numa noite especialmente abusada. Facinha, facinha.

Sempre fantasiou que iria fazer sexo por dinheiro, pelo menos uma vez, para experimentar. Mas Melissa não tinha coragem, e nunca cobrava depois das noitadas. Nem que o desempenho do homem tenha sido péssimo e ela merecesse uma recompensa pelos não-orgasmos e pela ausência de carinho. Era a típica puta grátis.

Mas, sentada ali no balcão, Sergio Leone de fundo, Melissa tomou sozinha as primeiras doses de whisky. Entre goles profundos, tentava imitar aquelas atrizes decrépitas do cinema nacional, que bebem álcool com uma desenvoltura de quinta, deliciosamente na lama.

“Tá machucada, gata?”, perguntou um cara. Pergunta errada, meu bem. Sim, ela tinha caído do céu, mas não era idiota, disse Melissa com os olhos, tão claramente que o homem nem insistiu. Meia hora passou e um bonitão sentou ao lado dela. Nem lembra muito bem a cantada que ele adotou. Mas, dane-se, era bonito, e isso que importava.

Quando deu por si, Melissa estava no banheiro com o rapaz, o copo de whisky em uma das mãos, o cigarro na outra e as pernas abertas. Na hora pensou em cobrar, “são 50 pratas”, mas não o fez. Com a cabeça mergulhada em Melissa, o bonitão não parecia assim tão bonito.

O whisky deve ter-lhe subido à cabeça, porque não se lembra de como saiu do banheiro. Estava novamente sentada no bar do Cine Cafofo, Sergio Leone já era uma vez faz tempo e a festa havia definitivamente começado. Percebeu-se conversando com um grupo de pseudões, “ah, o Godard”, “ah, o Kusturica”. Não, queridos, poupem-me, disse Melissa. Ou será que ela só pensou? O whisky não deixou seus neurônios se comunicarem. Ela queria mesmo era pornochanchada.

Quando o mofo havia preenchido totalmente suas narinas, Melissa resolveu que era a hora de terminar a noite. Com alguém, talvez? Saiu do Cafofo, foi para a rua. Acenou para um táxi, 090 era seu prefixo.

De repente Melissa estava ali, sentada no banco da frente do táxi, com o 090 em ponto de bala. Ele tentava entrar em um motel, mas ela despertou do famigerado estado de inebriedade, que teve início horas antes, em uma festa mofada de Laranjeiras. 090 não era o Robert de Niro, nem ela a Jodie Foster em início de carreira.

“Me leva pra casa”, disse ela, que não cobrou as 50 pratas do taxista. Pelo contrário, ainda pagou a corrida, tão ansiosa que estava para desaparecer dali.

sexta-feira, setembro 05, 2008

Cheiros palpáveis

O olfato sempre foi seu sentido mais apurado. Enxerga coisas que não existem, ouve tanto quanto a velhinha surda de “A praça é nossa” e suas digitais meio apagadas mostram que o tato não é seu forte.

É comum ver amigos caminhando em sua direção e, quando eles se aproximam, percebe que são clones. chegou à conclusão que clones andam em bando, cada um parecendo com alguém que ela conhece e prontos para lhe pregar uma peça.

Sua audição também é traiçoeira. Vira e mexe ouve alguém lhe chamando, quando não houve um pio. Mas é alguém realmente gritar por ela, que seu ouvido entope imediatamente. Isso sem falar das conversas absurdas que mantém com as pessoas, que dizem uma coisa, ela entende outra e responde algo sem sentido algum.

As digitais, como foi dito, estão desaparecendo. Recentemente, foi tirar a segunda via para a identidade e se surpreendeu ao ver o prazo de validade do documento: dois anos. Os dedos não estão dando conta de deixar suas marcas vitalícias no RG. Que remédio.

Mas, para ela, isso não passa de bobagem, pois aprendeu a desenvolver um super olfato poderosíssimo. Tem guardados na memória todos os cheiros que apreendeu ao longo da vida.

Chega a sentir falta de alguns.

Do cheiro do pescoço do namorado, das roupas de sua mãe, do armário de seu pai. Do cheiro dos lençóis da casa da avó e do bife acebolado feito pela tia. Do travesseiro onde dormiu por anos e anos, e agora não está mais sob sua cabeça. Do pêlo macio da cachorrinha, recém-saída do banho. Do cheiro do café fresquinho vindo da cozinha, mostrando que um novo dia está começando.

Cheiros a agradam, a inebriam e a põem em contato sensorial com o mundo. Por isso dispensa os outros sentidos.

Se bem que tem o paladar... Bem, ela adora um bom prato de comida. Mas isso não vem ao caso agora.

terça-feira, setembro 02, 2008

Apocalípticos e integrados

Hoje, meu penúltimo dia na Cidade Maravilhosa, está um sol daqueles. E eu estou tranqüila e sem ondas. Placidamente acordei, tomei meu café, li o jornal. Positiva e otimista, mas ainda em crise criativa. Portanto, abaixo segue um fragmento apocalíptico de semanas atrás, que não corresponde ao momento-hoje.

“As más notícias não param de chegar. Alguém que ficou doente de repente, uma jovem grávida que perdeu o bebê sem motivo aparente, uma tia que descobriu um mal incurável, uma criança que parou de enxergar... Se o corpo humano é realmente uma máquina perfeita, então há algo de muito errado acontecendo. São muitas falhas para o que sempre fora chamado de “o melhor computador do mundo”.

Culpa da vida, não ela em si, natural e sagrada, simples como os quatro elementos. E sim no que o homem a transformou, vida-nêura, vida-estresse, vida-paranóia, vida-fútil.

A máquina não aguenta tanta pressão, é lógico que falha, e cada vez em maior escala, com doenças mais graves e inimagináveis.

O corpo não sustenta a realidade de hoje, e pede socorro, impedindo que crianças venham ao mundo e se transformem em novas vítimas. Alguma coisa está fora da ordem, não só mundial ou universal, mas individual.

Precisamos recomeçar, repensar, apertar o reset e formatar o computador. Senão os vírus vão tomar conta de tudo, transformando-nos na raça dos mutilados pelo nosso próprio corpo, que se autoboicota em resposta ao caos.”

sexta-feira, agosto 29, 2008

Já está à venda!


Queridos amigos e leitores, o livro "Não abra" já está disponível para venda na Editora Multifoco, que fica na Avenida Mem de Sá, 126, Lapa.

Para quem mora fora do Rio ou tem medo de se perder entre copos do bairro boêmio, clique aqui!

Quero agradecer a presença de todos no lançamento. Foi uma noite linda!

Flavs, obrigada pelo post!
Fred, valeu pela força!

quarta-feira, agosto 20, 2008

"Não clique" vai virar "Não abra"!


E todos vocês estão convidados para o lançamento.

segunda-feira, agosto 18, 2008

E eis que algo surge do limbo virtual...

Em crise criativa pré-lançamento de livro, resolvi fazer uma retrospectiva de alguns posts do passado, que acabam ficando esquecidos no limbo virtual. Quem não leu, pode aproveitar para ler e comentar. Quem já leu: ficarei feliz com um bis!

A morte precoce de um amigo que lhe deixou um belo quadro como herança
We’ll always have Paris

Visita tocante e surpreendente à favela Cidade de Deus
Na CDD

Um stripper carente que só queria tomar sorvete
Gente normal

Poder sobe à cabeça de garota pobre que voa na primeira classe do avião
Vivian

Elucubrações sobre a vida e o tempo
Com neurose

Gertrudes sonha com uma vida melhor. Mas acaba na panela.
Fuga das galinhas

Guarda do Vaticano seduz turista
Lições do Vaticano

Declaração de amor rasgada
Renato Russo sabe

Rapaz se despede da vida doando seus livros
Os livros de Ivo

...

Pisca aqui.
Deixa os cílios roçarem no meu rosto.
Sua respiração me tira o ar.
Agridoce.
Pescoço no nariz. Boca no ouvido.
Pisca aqui.
Que o amor é feito de cócegas.
E de olhos que abrem e fecham.
Doces.

*Para o meu amor

quarta-feira, agosto 13, 2008

A favorita

Como pode, ao mesmo tempo, ser sol e lua, yin e yang, sal e açúcar?
Como pode, no mesmo corpo, haver santa e puta, explosão e contenção, frisson e gelidez?
Ela consegue ser escrachada num momento, para no minuto seguinte ruborizar.
Pode dizer as coisas mais sacanas no ouvido de quem deseja, mas quase morre ao ver cenas libidinosas ao lado de parentes.
Ela incorpora, no mesmo dia, Madre Teresa de Calcutá e Salomé.
Acende vela para Deus e outra para o Diabo, e muitas vezes confunde quem é quem.
São várias caras, e nenhuma é falsa. Facetas diferentes de uma pessoa complexa, completa, que emana luzes de cores primárias, que em segundos viram secundárias. Depende do dia, da hora, da companhia, do lugar.
Mas, no fundo, é sempre ela. Sempre verdadeira, saibam todos. Se toparem com uma, e depois com a outra, podem cumprimentar. Ela vai responder com afagos ou mordidas. Depende do dia.

sexta-feira, agosto 08, 2008

Como substituir amores

Logo no primeiro dia em que chegou, Lolinha conquistou o coração de Aquiles. Loura, seios fartos, boca convidativa, cintura fina. E não tinha somente estes atributos de mulher fútil. Aquiles via nela duas das qualidades que mais admirava nas fêmeas: não tagarelava e sabia ouvir o companheiro. Como todo relacionamento, o início foi de muita paixão. Noites e noites rolando na cama com Lolinha, Aquiles não queria saber de mais nada. Chegou a fingir uma gripe para faltar o trabalho e garantir alguns dias de luxúria com sua loura. Seu programa preferido era tomar banho de banheira com ela: adorava como o corpo de Lolinha ficava escorregadio na água, um convite para momentos inigualáveis a dois.

Também como todo relacionamento que dá certo, da paixão voluptuosa veio o amor incondicional. Aquiles e Lolinha continuavam enroscados dia e noite, mas agora os encontros tinham pitadas de romantismo rasgado. Aquiles levava flores, preparava jantares a dois em seu pequeno apartamento. Cada vez mais apaixonado, ele se declarava de forma emocionada, fitando os olhos sempre abertos dela, desejando ainda mais a boca convidativa da moça.

Como alguns relacionamentos que dão certo e depois se perdem, o amor foi corrompido por uma dose exagerada de ciúme. Tão grande era o sentimento de Aquiles por Lolinha, que ele se transformou num obsessivo de marca maior. Com medo de perder sua mulher para os amigos, Aquiles nunca a apresentou a ninguém. Os dois passavam a maior parte do tempo juntos e sozinhos, sem interferências externas. Os amigos cochichavam a respeito dele às escondidas. Ninguém acreditava que Aquiles tinha mesmo a tal mulher incrível da qual ele tanto se gabava. Afinal, nenhum deles havia visto Lolinha. Chegaram a fazer um bolão no escritório, onde as más línguas apostavam que “ela”, na verdade, era “ele”.

Aquiles não se importava com o que diziam, pensava só em Lolinha, em ficar com ela, em aproveitar seu silêncio em paz. Sim, silêncio, pois, como já foi dito, ela não tagarelava e estava sempre atenta ao que dizia o namorado. Mas a verdade é que Lolinha não falava. Nada, nadinha. Um júbilo para os ouvidos de Aquiles, falador profissional que sempre se irritou com mulheres verborrágicas.

Só que, como a maior parte dos relacionamentos, a rotina chegou, abriu a porta e sentou no sofá. Após tanto tempo isolados do mundo, Aquiles e Lolinha não tinham mais o que conversar. Ou melhor, ele é que não tinha o que dizer, já que ela não emitia sons mesmo. Aquele silêncio todo de repente virou um suplício. Aquiles começou a desejar que ela falasse. A boca outrora convidativa de Lolinha se transformou num buraco negro desinteressante. Num dia de angústia incontrolável, empurrou a mulher contra a quina da parede. E então foi o fim.

Num estouro que se ouviu até nos andares de baixo, Lolinha desapareceu. Esparramados no chão, pedaços de plástico que um dia formaram o corpo da boneca inflável de Aquiles. Desesperado, ele agarrou-se aos restos mortais de sua amada, jurando nunca mais comprar outra.

Uma semana depois, o correio entregou um pacote no apartamento de Aquiles. Era Silvinha, uma morena de arrasar quarteirão.

terça-feira, agosto 05, 2008

Os olhos de Laura

Encostou o nariz naqueles cabelos macios e ruivos e teve a sensação da eternidade. “Quero morar aqui”, pensou, enroscando-se nos compridos fios dela. Os cabelos de Laura eram tão tenros quanto as carnes de suas coxas. Também rosas, também eternas. “Acho que ela nunca vai envelhecer”. Em seus devaneios de amor, pensava em Laura como um ser atemporal, que tem o cheiro do universo. Seus gestos também não faziam parte de tempo algum. Olhava para a ruiva e a via flutuar. Sentia-se imensamente inferior àquela mulher divinal, mas quando tocava naqueles cabelos macios era como tivesse respostas para um não sei o quê. Laura era o sim quando pensava no não, era a tranqüilidade quando se perdia em ânsias. A sabedoria que vinha das madeixas ruivas e perfumadas, da carne macia e sã, dos olhos de metáfora e mistério. Nunca entendia os olhos de Laura à primeira vista. Laura era mulher para uma segunda vista, ininterrupta.

quarta-feira, julho 23, 2008

Procura-se morfina

Ela tem molas que espremem suas entranhas.
Ela tem um animal que corrói o fígado como a ave de Prometeu.
Ela tem agulhas no estômago, alfinetes na vesícula.
Ela tem amarras nas vértebras e hastes cravadas no ouvido.
Ela tem mãos que lhe apertam o coração; sacos plásticos no pulmão.
Tudo nela dói, desde o mindinho do pé ao último neurônio do cérebro.
Mas, como toda mulher, suporta as dores.
Aprendeu a conviver com elas, se bem que anda um tanto farta.
Procurou marceneiros, veterinários, costureiros, marinheiros.
Ninguém conseguiu libertá-la dos objetos de tortura.
Dizem que continua vagando. Buscando, talvez, um farmacêutico que lhe dê injeções de morfina.

quinta-feira, julho 17, 2008

Remorso

Saiu da festa transtornado, álcool no sangue e remorso no peito. Pegou o carro feito doido que nem viu. Aquela maldita, por que ela fez isso, ele estava tão bem. Mas acabou deixando a festa alucinado, tão doído ele estava que pegou a estrada febril. O cachorro veio distraído, cachorro bobo, de família. Freou com força, mas era tarde. Sentiu o baque, o carro passou em cima do bichinho. Que merda, ele chorou. "Matei o cachorro, sou um criminoso, sou um assassino". Tão transtornado ele estava quando saiu da festa, aquela putinha tanto fez que o levou para o banheiro. Sorte que ele despertou antes do fim, mas foi o suficiente pra sentir culpa, ele tinha tanto amor e não era por aquela vagabunda. Cheio de remorso, pegou o carro, e aí veio o cachorro, por que aquele bicho atravessou a rua justo naquela hora? Bandido, matou um cachorro e traiu a mulher, no mesmo dia, na mesma noite. Estacionou o carro no acostamento, pegou o animal no colo. Estava inerte, não se mexia, ele o havia matado, assim como matou o respeito pela mulher, tudo por uma desfrutável que não valia um centavo. Aquele cachorro era ele mesmo, morto por um carro desgovernado, morto pelo inesperado, pela vagabunda insaciável. Resolveu enterrar com o cão aquela noite inútil, o sentimento doloroso foi junto para a cova, feita sob lágrimas no matagal ao lado de casa.

terça-feira, julho 15, 2008

14 latão

Terminal Rodoviário Menezes Cortes, centro do Rio. Uma bêbada entra no banheiro e pede a uma sóbria que está ali para segurar a porta, que não tem trinco.

Bêbada: Segura pra mim. Esse banheiro dá muito tarado.

Sem alternativa, a sóbria segura a porta imunda.

Bêbada: Colega, tô bebinha...Também, desde 7 horas da manhã no goró!

São cinco da tarde.

Sóbria: Você tá bebendo há dez horas??

Bêbada: É que eu trabalho na barraca ali na frente.

Sóbria: De bebida?

Bêbada: Não, de doce. Mas tem a barraca do lado, né? Aí eu vendo um pouquinho, bebo um pouquinho... Só hoje foram 14 latão e 3 quente!

Sóbria: Mentira!

Bêbada: Verdade! Te juro pra você.

A bêbada dá a descarga.

Sóbria: Se eu bebo 14 latões, saio carregada. É muita coisa!

Bêbada: Ah, que isso... 14 latão tu num guenta? Nem 14 latinha?

Sóbria: Nem latão nem latinha.

Bêbada abre a porta da cabine.

Bêbada: Tu é fraca, hein, colega!

Sóbria: Tu que é sinistra, colega...

Bêbada: É só beber coca-cola e chupar muita bala.

Sóbria: E engov? Sonrisal?

Bêbada: Isso é balela, minha filha. Tem que botar é açúcar no sangue. Depois chega em casa e dá um trato no marido.

Sóbria: Ele não reclama não?

Bêbada: Reclamar de quê? Tô botando dinheiro em casa. Ai dele se der um ai.

Sóbria: Tá certa... Bem, vou lá!

Bêbada: Valeu, colega! Vai treinando em casa que tu consegue. Depois vem aqui competir comigo.

A bêbada ri, sabendo que aquela sobriazinha fajuta nunca seria páreo para ela.

Sóbria: Ah, pode deixar. Quando eu fizer 14 latões, falo contigo.

Bêbada: Aí vai ser tarde demais. Essa noite eu chego nos 20.

A sóbria acha graça e trata de sair dali. Pega um frescão de 6 reais. A bêbada volta para a barraquinha de doces, onde segue rumo aos 20 latões.

sexta-feira, julho 11, 2008

O grito de Joana

O. fez um esforço tão grande para abrir os olhos. Pareciam colados, como se há muito não ousassem piscar. Puxou pela memória e não se lembrou da última cena que viu antes de sentir as pálpebras descerem seu pano preto, indicando o fim do espetáculo. O. sentia que, se quisesse, poderia abrir os olhos de novo. Mas o grito de Joana ecoou em seus ouvidos como aviso, era um grito sem nexo e gutural, mas ele o ouviu como prenúncio. Fazia tempo que aquele grito havia saído da boca de Joana, mas, O. sabia bem, vozes são eternas, repetem-se exaustivamente na cabeça de quem tapa com as mãos os ouvidos.

"Não abra os olhos", era o significado daquele grito, vindo daquela Joaninha espevitada que voejou-lhe a vida por muitos anos e agora vinha pousar-lhe no nariz. Mas O. tinha os olhos fechados há muito, tanto que nem lembrava o porquê. Ignorou o ruído joanístico e de um só lampejo, escancarou os olhos até quase enroscarem-se cílios e sobrancelhas.

Neste exato momento entendeu o desespero de Joana, ela gritou faz tanto, mas o tempo passou e a voz dela tinha razão. Assombrado com o que viu, O. sentiu a vista turvar-se de lágrimas, até que fechou os olhos. Desta vez, por tempo indeterminado e por escolha própria: nunca mais iria enxergar, fosse o que fosse. Joana estava certa. "Matenha-os fechados. Mantenha-se são". Era o que dizia para O., que a obedecia cegamente, em pleonasmo.

domingo, julho 06, 2008

Pi-pi-pi-pi!

Começou numa noite qualquer. O barulho do videogame indicava que o vizinho tinha ganho um brinquedinho novo. Novo entre aspas. Era brinquedo velho mesmo, pois o som era de Atari. Vanderson conhecia muito bem aqueles ruídos que remetiam à sua infância. Divertiu-se muito com eles, mas ouvi-los aos 30 e poucos anos, na hora de dormir, era um pé-no-saco. Pi-pi-pi-pi! Vanderson tapava a cabeça com o travesseiro. O vizinho estava jogando River Raid. Aquele do avião, sabe? E o pior é que o vizinho batia toda hora. Só de ouvir o barulho, Vanderson conseguia vizualizar o percurso. Desvios, tiros nos inimigos, fuel. Que suplício era o fuel. Pi-pi-pi-pi! "Burro!", pensava Vanderson, cada vez que o vizinho batia na ponte. Começou a chamá-lo de "O barbeiro do Atari".

As noites se seguiram e o barbeiro continuou com suas manobras. O vizinho jogava Enduro, Pitfall, Space Invaders. Vanderson não conseguia controlar a própria mente e jogava contra o adversário no maravilhoso mundo de sua imaginação. Os barulhinhos viraram uma psicose, ia deitar esperando os ruídos começarem. Preferia o River Raid por conta do barulho do fuel, ou até mesmo o Enduro, pois o ronco contínuo do carrinho de corrida o fazia dormir como um anjo. Vibrou quando o barbeiro do Atari investiu no jogo do ladrãozinho.

Meses se passaram e aquela rotina noturna se repetiu.

Numa noite, entretanto, não houve barulho. Vanderson rolou na cama, virou de um lado e do outro, até chegar à triste conclusão: estava viciado no Atari do vizinho. Precisava do pi-pi-pi, das explosões, dos barulhos de tiro. Maldito! Que fazia o vizinho que não estava mais jogando videogame? Vanderson resolveu bater em sua porta após uma semana de insônia. Ninguém atendeu, então deixou um bilhete. "Caro vizinho do 506, Já leu o Pequeno Príncipe? Tu és responsável por aquilo que cativas! Se não for pedir muito, por favor, volte às noites de Atari. Muito agradecido. Vanderson do 507." A noite seguinte foi de ansiedade. Será que o amigo desconhecido resolveria o problema? Mas nada aconteceu. Vanderson ouviu somente um barulho de cama batendo na parede. E não dormiu, mais uma vez.

No dia seguinte, ao pegar o jornal embaixo do tapete, deparou-se com um pacote. Preso a ele, um bilhete: "Caro Vanderson do 507. É com prazer que venho lhe informar que minha vida mudou. Arranjei uma namorada. Não preciso mais do Atari. Se você sente tanto a falta do videogame, aqui está. É meu presente para você. Aproveite." Vanderson sorriu. Seus problemas estavam resolvidos. Mas entrou em pânico ao deitar-se. Se jogasse o videogame, não dormiria. Se não jogasse, não ouviria os tão esperados ruídos, e também não dormiria. Concluiu que seu destino deveria ser o mesmo do vizinho. Precisava arranjar uma namorada.

Ela, sim, poderia brincar com o Atari e fazê-lo dormir como um anjo novamente.

terça-feira, julho 01, 2008

Na noite do tango

Na noite do tango, estrelas de cartolina caíram sobre suas cabeças. Ela estava um tanto nostálgica, ouvindo as declamações portenhas ao som tão familiar do bandoneón.
Na noite do tango, ele estava distante, pensamento longe ou perto dali, tomando devagar sua cerveja de rótulo doce e sabor amargo.
Na noite do tango, ela chorou com as canções de amores, de passado, de saudades. Olhou para ele, que não estava ali, e sentiu medo do futuro.
Na noite do tango, ele despertou com as lágrimas dela e enxugou-as uma a uma. Beijou, cuidou, acalmou, fazendo-a sentir-se tranqüila outra vez.
Na noite do tango, ele e ela se encontraram novamente, perdendo-se juntos sob as estrelas de cartolina.

quinta-feira, junho 12, 2008

Quero ser Grace Kelly e Audrey Hepburn!

Adorável é palavra antiga, pouco utilizada hoje em dia, mas que, no passado, foi o adjetivo mais empregado para as mulheres bonitas e surpreendentes. Aquelas que possuíam uma graça especial, um quê de brilhante que fazia os homens se sentirem tolos. As adoráveis de ontem podem ser as “fofas” de hoje. E no hall de fofas do cinema certamente estão Grace Kelly e Audrey Hepburn. Assistindo a “Janela Indiscreta” (Alfred Hitchcock) e “Bonequinha de Luxo” (Blake Edwards), é impossível não querer ser Lisa Fremont e Holly Golightly. No caso de Grace, é quase inacreditável a indecisão do personagem de James Stewart quando aquela mulher praticamente o pede em casamento. Jeff prefere sair pelo mundo a fotografar quando a obra de arte mais perfeita está bem na sua frente! Além de linda de morrer, Lisa se dá ao luxo de ser espirituosa, sagaz, dona de um inglês irrepreensível e rica! Quando o amado está temporariamente inválido numa cadeira de rodas, ela leva o restaurante mais chique da cidade até o minguado apartamento de Jeff. E mergulha de cabeça na obsessão do fotógrafo, que por conta de sua imobilidade, passa noite e dia observando os vizinhos, captando então alguns indícios de assassinato. Lisa não deixa um bilhete anônimo na casa do suposto assassino, como invade seu apartamento altas horas da noite para conseguir pistas! Acaba na cadeia, a pobre, mas mesmo liberta, volta cheia de sorrisos para seu amor. Surpreendente, não? Peraí, meus queridos! Eu quero uma versão masculina de Miss Fremont!

Audrey Hepburn é um pouco mais mundana como Miss Golightly. Sente-se plena somente quando perambula pela loja de jóias Tiffany’s, um lugar, onde, segundo ela, nada de mau pode lhe acontecer. Algo como "Nãolugar como o nosso lar" da Dorothy de “O Mágico de Oz”. Mas mesmo um poço de futilidade, mesmo sendo o retrato da patricinha golpista dos anos 60, Audrey encanta. É faceira, natural, tem neologismos deliciosos e bebe leite como ninguém numa taça de champanhe. Adora um drink, aliás (mulher que bebe é sempre mais interessante, com algumas exceções, óbvio), e toma porres que não condizem com sua aparência frágil e esquálida. Resumindo: surpreendente. O problema é que Golightly foge do mundo para fugir de si mesma, até quando encontra o amor de sua vida, Paul Varjak (o lindo George Peppard), que cisma em chamar de Fred, pois ele lembra seu irmão militar. Nesse ponto a Grace Kelly do mestre do suspense é mais bem-resolvida: sabe o que quer, é decidida. Sabe que tem o mundo aos seus pés e o que vai escolher da prateleira da vida.

Diferenças à parte, o que importa é que, para o deleite do público, ambas as heroínas tiveram finais felizes e de acordo com a persona de cada uma: para a doce e tempestuosa Hepburn, a chuva banhada pela belíssima e romântica “Moon River”, de Henry Mancini; para a moderna e criativa Grace, o jazz de Franz Waxman. E ao subir dos créditos derradeiros, eu não me envergonho nem um pouco de assumir: quero ser Grace Kelly e Audrey Hepburn!

* texto de 2004, publicado no meu finado blog Movieola

**Estou de férias, de malas prontas para a Patagônia. Volto dia 30 com novidades...

quarta-feira, junho 04, 2008

Devaneios de Humbert Humbert


Primoroso na fotografia, na escolha das cenas e dos atores, “Lolita” de Stanley Kubrick (1962), foi injustiçado nas severas críticas à estreante Sue Lyon, que para muitos, não conseguiu emanar a sensualidade digna de uma Lolita. O excesso de humor empregado por Peter Sellers também não transformou as cenas de Quilty em um pastelão incoerente com o texto de Nabokov, como se falou na época. O pecado de Kubrick, se é que se pode chamar uma escolha artística assim, é apenas um: não mostrar os devaneios da mente insana de Humbert Humbert. Afinal, o intelectual pedófilo foi trilhando, desde sua chegada à cidade de New Hamsdale, um caminho tortuoso até a total insanidade. Desde que se deparou com aquela menina de 12 anos tomando sol no jardim com seus óculos em forma de coração, a mente daquele homem modificou-se por completo. Humbert tornou-se obcecado por Lolita e fez de tudo para tê-la: casou-se com a mãe da garota, planejou a morte da mulher, que acabou acontecendo acidentalmente e depois se apossou da ninfeta de forma tirânica. Como um inspetor severo de um colégio religioso, impediu-a de ter namorados, impunha-lhe horários e perseguia-a às escondidas. Lolita o traía com outros homens? Conseguia aquela criança enganá-lo apesar de todo o controle? Humbert entra em paranóia.

No livro, Nabokov deixa em aberto, ao longo das páginas, se a desconfiança do protagonista é real ou fruto de sua produtiva imaginação. E é aí que Kubrick poderia explorar em grande estilo. Esmiuçar o suspense e o mistério da forma que fez em “De olhos bem fechados”, intercalar imagens fantásticas como em “2001 – Uma odisséia no espaço”, abusar da imperiosidade musical para pontuar as situações mais bizarras, como em “Laranja Mecânica”. Dar um toque David Lynch às insanidades de Humbert (que me perdoem os anti-Lynchanos...), que cisma com a perseguição de Quilty, vendo-o em todos os lugares; que vê em cada rosto masculino uma ameaça a sua querida Lo. Humbert vê coisas, sente-se encurralado. Prato cheio para cenas a la “Cidade dos sonhos” e “Coração Selvagem”.

Mas esta opção do cineasta obviamente não diminui a importância da obra, nem sua beleza, nem seu lirismo cínico. O cineasta escolheu perfeitamente as cenas que deveria adaptar do livro para a película, inclusive a decisão de colocar na primeira cena a morte de Quilty e a partir daí a volta no tempo. O devaneio humbertiano é apenas uma sugestão que eu sopraria ao pé do ouvido de Kubrick no momento primeiro da criação das cenas. Como um anjinho demoníaco pedindo algo mais marginal. Como uma Lolita.
* texto de 2004 publicado no meu finado blog Movieola

segunda-feira, junho 02, 2008

Bobagens de segunda

De volta ao maravilhoso mundo das kombis, lugar que me dá tanta alegria (???) e sempre histórias pitorescas para contar. A de hoje aconteceu semana passada. Sentou do meu lado um rapaz de uns 20 anos, mais ou menos. Segurava uma certidão de nascimento novinha em folha. Era do filho dele. O nome do bebê: Kayck. Tive pena do pobrezinho, tão pequeno e com um nome tão cafona. Revirando os olhos um pouco mais, consegui ler o nome dos pais de criança: Gilliard e Ruanny. Deus meu! Agora compreende-se porque eles quiseram deixar esse legado para o filho. É uma tradição familiar. Comprovei a teoria ao ver como se chamavam os avós paternos: Gilmar e Gilvanice. Uma dupla sertaneja, provavelmente.

Fiquei rindo sozinha pensando nas festas de aniversário dessa família. Imaginem na hora do rá-tim-bum: Ruuu-âaa-niii! Ou então: Gili-ár-diiii! Mas a campeã com certeza é a vovó: Gil-va-ni-ciiiii! Meu sonho ir no aniversário de Gilvanice. Deve ser incrível gritar o nome dela bem alto e em separação de sílabas!

Ok, podem dizer. Vou pro inferno.

terça-feira, maio 27, 2008

Farsa inútil

Tire-a já da mediocridade, é seu dever salvá-la do óbvio.
Salpique cores no bege que a assola.
Empurre-a para o abismo, pois só colidindo com as pedras ela irá respirar.
É seu dever fazer respiração boca a boca, trazê-la de volta à vida, e não esta farsa inútil.
Da farsa inútil já basta todo o resto.
Se ela merece fugir da angústia acachapante, é seu dever resgatá-la.
Se não merece, deixe-a dormir, então. E não a incomode mais.

quinta-feira, maio 15, 2008

Pequenezas

Dentro da bolsa, o caos. A chave de casa que enrosca no crachá, que prende na pinça, que agarra o elástico de cabelo, que se embola no porta-moedas. É sempre assim: toda vez que vai abrir a porta, ela pega a chave e vem tudo junto. Xinga deus e o mundo, jura que vai separar cada coisa em bolsinhos. Mas, no dia seguinte, é a mesma coisa.

Pior é quando está entrando no ônibus. Seu celular cisma em tocar, e ela, afobada, não sabe se atende o aparelho, se paga a passagem, se segura as várias bolsas que sempre carrega ou se segura a si mesma para não cair, já que os motoristas cariocas estão sempre prontos para tirar o pai da forca.

Sua vida é assim mesmo. Enrolada, complicada, um prato cheio para a hiena Hardy entoar seu famoso bordão. Oh, vida, oh, azar, ela mesma repete, às vezes, ao tropeçar nos buracos das calçadas. Suas pernas são pintadas de manchas roxas, resultado de pancadas dentro do ônibus – os motoristas, sempre eles – ou de manobras radicais que faz para entrar nas kombis. Sempre jura que nunca mais vai entrar nestas latas velhas de sardinha humana. Mas, no dia seguinte, é a mesma coisa. Acaba enrolando-se também com outros passageiros, naquele espreme-espreme dos infernos.

Certo dia, sentada na janela, foi obrigada a dar lugar para uma senhorinha, que tentava subir na kombi com um tabuleiro. “Segura aqui, minha filha. É lasanha. Eu que fiz”. Segurou o tabuleiro quente enquanto a velhinha se sentava no melhor lugar, fazendo-a colar coxas com o motorista (ela odeia colar coxas com desconhecidos). E seguiram assim até ela devolver a lasanha, já que a velhinha folgada queria mesmo é ficar de mãos livres vendo a vista lá fora. Outro dia, teve que ouvir uma ladainha bizarra de mais uma senhora, que contava as aventuras amargas que teve com a patroa. “Falei pra ela: só de raiva vou botar seu nome na minha filha, pra eu nunca mais esquecer da senhora”. E assim a pobre criança foi batizada de Elza, o nome da maior inimiga da mãe.

Enrolada dentro da bolsa, achincalhada nos ônibus e espremida em kombis, ela quer se libertar. As pequenezas da vida a afrontam, atrapalhando o que chama de suas “causas nobres”.

sexta-feira, maio 09, 2008

Ensaio sobre a conjuntivite

1º dia - acorda com os olhos vemelhos. Acha que é uma irritação boba e pinga soro.
2º dia - a irritação piora. Pinga água boricada. No trabalho, tenta entrevistar algumas pessoas, mas sente que está sendo evitada.
3º dia - olho fica mais vermelho e inchado. Médico diz que é uma conjuntivite viral e contagiosa. Ela percebe que é sério quando ele se nega a apertar sua mão.
4º dia - trabalhando de casa para não infectar os colegas, sente que seus pais não querem beijá-la.
5º dia - o namorado não a visita e deseja melhoras através da webcam. Uma secreção começa a escorrer de seus olhos.
6º dia - decide ficar no quarto, afundada nos filmes. Sente tonturas. Fica tocada com a solidariedade da mãe, que começa a deixar a comida sobre a bancada.
7º dia - depois de um cochilo, percebe que fecharam a porta do quarto. Seu corpo está quente. Febre alta. Olha-se no espelho e vê que o outro olho também fora tomado pelo mal. Sofre delírios.
8º dia - dorme o tempo todo, enrolada no cobertor. É um casulo. A secreção dos olhos escorre para todo o corpo. Pensa que seria a secreção metamórfica, moldando-a com o casulo para a nova vida.
9º dia - não se levanta mais para pegar a comida. Se bem que há tempos ninguém deixa nada para ela. Sente a umidade incomodando-a dentro do casulo. Seus ombros doem de tanto ficar deitada. "Deve ser as asas despontando".
10º dia - Surpreende-se com a mãe na cabeceira da cama: "Chega de hibernar". Pega o espelho e aponta para a filha. A conjuntivite tinha sarado. Ela sai debaixo das cobertas, empapadas de suor. Não tem asas nas costas. Suas pernas continuam sendo pernas, e não patas. Vendo que não se transformou em borboleta alguma, dá um beijo na mãe e vai tomar um banho, como um ser humano qualquer.

segunda-feira, maio 05, 2008

Eterno crepúsculo


Esses dias revi "Crepúsculo dos Deuses", um de meus filmes preferidos. Mais uma vez, chorei e me impressionei. Abaixo, segue uma resenha que escrevi sobre o filme em 2004, para o meu finado blog Movieola.

"Dizer que “Crepúsculo dos Deuses”, de Billy Wilder, é uma obra-prima atemporal não é novidade alguma. O filme, de 1949, soa atual até hoje não só pelas imagens bela e cuidadosamente captadas, como pelos seus diálogos vivazes. Mas existe na obra uma beleza escondida, detalhes de making of que lhe dão um toque ainda mais humano. Comecemos primeiro falando do óbvio para depois chegar ao curioso.

“Crepúsculo” impressiona logo na primeira cena, a dos créditos mesmo: a câmera, em movimento, acompanha os carros que seguem para o Sunset Boulevard número 10.000. Os créditos vêm e vão no corre-corre dos veículos, compassados perfeitamente com a música incidental. Quando a câmera entra naquela casa misteriosa, encontramos Joe Gillis (William Holden) morto boiando na piscina. Primeiro, o vemos de cima, junto com policiais e repórteres que se aglomeram. Depois, o toque de gênio: avistamos o corpo de frente, como se estivéssemos mergulhados encarando o defunto, que bóia de boca e olhos abertos. Tal cena hoje em dia pareceria, no máximo, interessante, pois imagens subaquáticas são bastante comuns. Mas no fim dos anos 40 não existia tecnologia suficiente para se filmar dentro d’água, e o diretor Billy Wilder encontrou uma solução perfeita: colocou um espelho no fundo da piscina e captou a imagem refletida por ele. O resultado foi um take perfeito e ousadíssimo para a época.

Outra característica que atesta a atemporalidade do filme são os diálogos. Parece que o protagonista Gillis conversa com sua quase-amante Betty Schaefer (Nancy Olson) em pleno século XXI. O drama vivido por eles é mais que atual: um homem que se vende em troca de dinheiro e de uma vida requintada; uma moça jovem e ambiciosa que sonha com o sucesso profissional e acaba se apaixonando pelo galã marginal. Mais “Julia Roberts”, impossível. Só que numa versão mais inteligente. A única personagem que parece datada, e é assim propositadamente, é a diva do cinema mudo Norma Desmond (Gloria Swanson). Ela contrata o roteirista Gillis para escrever seu novo filme e lhe fazer companhia, mas acaba se apaixonando por ele e tenta comprar seu amor com roupas, dinheiro e jantares. Ao contrário da sagacidade dos personagens de Nancy e Holden, Norma parecia ter saído direto das telas de cinema mudo, pelo seu modo de falar, gesticular e olhar exagerados. Ela já era datada nos idos dos anos 40, uma peça de museu. Ou como dizia Gillis, fazia parte do grupo de bonecos de cera.

É aí que chegamos à parte mais humana do filme. A atuação de Gloria Swanson foi tão real talvez porque ela estivesse representando a si mesma. Assim como Norma, Gloria também era uma diva do cinema mudo esquecida com o surgimento do cinema falado. E seu mordomo no filme, Max, interpretado por Eric Von Stroheim, era um diretor das antigas que havia descoberto Norma no início da carreira. Tal qual aconteceu com Gloria Swanson quando nova. Billy Wilder também teve a delicadeza de colocar na película a atuação pequena, porém marcante do também diretor Cecil B. de Mille, que fez o papel dele mesmo. E as cenas em que Norma foi à Paramount achando que iria estrelar um filme novamente foram feitas no próprio estúdio, no set de filmagens de Sansão e Dalila. Quando a estrela ofuscada recebia mais uma vez o jato dos refletores e todos aqueles funcionários – os mais jovens e os mais velhos, que a conheciam – começaram a aplaudi-la, aquilo não era ficção. As palmas eram reais, e provavelmente a lágrima que marejou os olhos de Norma era na verdade da própria Gloria.

São apenas algumas dentre outras várias curiosidades desta obra, vencedora de três Oscar (roteiro, trilha sonora e direção de arte)."

Filmes bons nunca envelhecem, era o título do antigo texto.

domingo, abril 27, 2008

Ilusão de ótica


Tinha obsessão pelo pôr-do-sol, e seu quarto impregnado de fotografias contra-luz provavam isso. Quando estava muito angustiada, ia à praia sozinha vê-lo ir embora. Irritava-se um pouco com as palmas dos hippies e hypes de Ipanema, então ia para a Barra da Tijuca, que não tinha o Dois Irmãos para interromper.
 
Gostava de fixar o olhar no sol até chorar, enquanto sentia o vento de maresia envolvendo-lhe o corpo. Quando já estava cega pela claridade, apertava as pálpebras com força, ao mesmo tempo em que seus dedos dos pés agarravam-se aos grãos de areia, cavando buracos ondulados.
 
Era uma mania solitária e nunca contou a ninguém. Quem convivia com ela sabia que costumava ir à praia nos fins de tarde, mas não imaginavam que fosse pelo sol. Ela, por sua vez, não fazia questão de ninguém por perto. Estava tão envolvida em seu mimetismo solar que solidão era o que menos sentia naquele momento.
 
Num destes fins de tarde, os olhos já ardendo, sentiu uma vontade irresistível de voltar-se para o mar. Dentro d'água, um rapaz acenava em sua direção. Nunca o vira antes, o aceno não devia ser para ela. Mas ali por perto não tinha mais ninguém. Sim, era para ela.
 
Resolveu não dar atenção, podia ser um louco qualquer. Afogando-se, ele não estava, pois acenava com apenas uma das mãos e, mesmo à distância, ela conseguia identificar no estranho um sorriso de canto de boca. Decidiu continuar olhando o sol. Mas a imagem do rapaz, fixa na retina, parecia dançar no meio da bola de fogo. Irritou-se, ele atrapalhara tudo. Voltou-se novamente para o mar e lá estava ele, ainda acenando, ainda com o maldito sorriso no canto da boca.
 
Levantou-se, um pouco cega, e resolveu tirar satisfação. Mas ao aproximar-se da beira d'água, ele deu um mergulho e desapareceu. Ela o xingou em pensamento e voltou para a sua canga. Ficou ainda alguns minutos fitando a água, mas nada dele aparecer. Cansou e decidiu retornar ao sol, que estava sempre ali, não acenava e nem mergulhava. Estava se pondo, como em todas as tardes.
 
Quando as lágrimas já estavam rolando, os pés agarrados à areia, o vento tomando-lhe inteira, angustiou-se. Quis olhar o mar novamente. Tentou controlar-se, não queria ver o estranho, ele incomodava sua paz. Com uma certa dose de masoquismo, porém, virou a cabeça para a direção do infinito, e lá estava. O tonto acenando, incansável. Tapou os olhos com as mãos, mas a imagem dele não sumia, vagava na dimensão escura misturada a objetos geométricos. Por entre os dedos entreabertos, viu que ele estava fazendo sinais.
 
Como que hipnotizada, ela seguiu as próprias pegadas em direção ao mar. O estranho, sorrindo agora de boca inteira, continuava chamando-a. Zonza depois de uma tarde inteira vidrada no sol, deixou-se cair na água gelada. Ele esticou a mão e puxou-a para si. Abraçou-a e mergulhou.
 
Depois deste dia, nunca mais se teve notícias dela. Amigos mais saudosos eventualmente olham para o céu, nos fins de tarde. Alguns arriscam dizer que, depois de alguns minutos, conseguem vê-la acenando, flutuando no meio do sol, ao lado de um rapaz estranho. Mas logo abaixam o olhar: é só ilusão de ótica.

sexta-feira, abril 25, 2008

Refazendo tudo...

Hoje o post é uma citação. Não que os outros não fossem, mas esta é explícita: "Refazenda", de Gil. Em breve, uma historinha sobre o verso "Nós também somos do mato".

"Abacateiro acataremos teu ato
Nós também somos do mato como o pato e o leão
Aguardaremos brincaremos no regato
Até que nos tragam frutos teu amor, teu coração
Abacateiro teu recolhimento é justamente
O significado da palavra temporão
Enquanto o tempo não trouxer teu abacate
Amanhecerá tomate e anoitecerá mamão
Abacateiro sabes ao que estou me referindo
Porque todo tamarindo tem o seu agosto azedo
Cedo, antes que o janeiro doce manga venha ser também
Abacateiro serás meu parceiro solitário
Nesse itinerário da leveza pelo ar
Abacateiro saiba que na refazenda
Tu me ensina a fazer renda que eu te ensino a namorar
Refazendo tudo
Refazenda
Refazenda toda
Guariroba"

Refaçam, amigos, refaçam! A vida, os desejos, tudo.

quinta-feira, abril 10, 2008

Aura Soma


“Use sua vasta energia de forma mais positiva possível. Inclua o amor em todos os atos, palavras e pensamentos. Quanto mais energia temos, mais responsabilidade. Podemos construir ou destruir, amar ou odiar, gerar vida ou morte. Seja um amante da vida e desperte para a grande festa, que é a oportunidade de estar neste planeta.”

Cada frasco contem uma mensagem. A minha veio como sinal, sinal de Waly, mais uma vez. A vida é sonho!

Veja qual seu frasco e fique livre para comentar.

terça-feira, abril 08, 2008

Salve, Waly

Sentados numa mesa de bar, mulher e homem conversam.

H: É impressão minha ou um leve purpurinar pousa sobre seus dedos?

M: Porra nenhuma. Falta arte em minha vida. Acho que fui deixando tudo encraquelar pelo caminho. Perdi muitos pedaços.

H: Então recolhe os cacos. E lança essa tua purpurina por aí. As pessoas vão gostar. As pessoas sempre gostam de você.

M: Eu queria era estar em Paris, nos anos 20. Mergulhada na Belle Époque. Mas acho que nos anos 20, ninguém ia achar graça em mim.

H: Nos anos 20, querida, ninguém teria graça. Você iria precisar de muita purpurina. Pensa só: Picasso, Hemingway, Chanel, Beckett? Não é essa mediocridade de hoje em dia.

M: Tirando o Waly. Ele me visitou essa noite. Com seus cabelos encaracolados e sorriso largo de sempre. Ficou repetindo: “A vida é sonho! A vida é sonho! A vida é sonho!”.

H: É um sinal, querida. Preste atenção, pois é um sinal. Waly nunca falha.

M: Sim... Mas eu estou tão cansada...

H: Não importa não, minha honey baby.

terça-feira, abril 01, 2008

Gente normal

P., 35, divorciada, nunca fez loucuras na vida. Aceitou o convite de uma amiga e foi a uma despedida de solteira num clube de strip-tease masculino. Nunca viu tantos músculos em trajes mínimos se movimentando em sua frente. Um deles a puxou para o palco, jogou-a para cima como se ela fosse uma pluma. A mulherada gritava, enlouquecida. Depois do susto, P. começou a se divertir com o lugar, tão pecaminoso como seus sonhos adolescentes mais distantes. Quando acabou o show, um dos strippers chegou perto dela e puxou assunto. Papo vai, papo vem, ele a chamou para conversar no terraço. Foram. Atracaram-se atrás de uma pilastra, para ele não ser flagrado pelo gerente “voando” em serviço. Chegou a hora da conversa.
- Qual o seu nome?
- P.
- P.?!
- Sim.
- Patrícia? Priscila? Pâmela?
- Só P. e ponto.
Voltaram aos beijos. P. nunca fora abraçada por um homem tão forte. Mas, apesar do tamanho, ele era do tipo sensível. Queria conversar.
- Então, Pâmela, a gente podia sair um dia desses...
- P.! Pra você meu nome é P.! Pâmela, não, né? Nome de puta.
- ....
- Ah, desculpe, não quis ofender a classe.
- Eu não sou puto. Sou dançarino.
- Mas não faz programa?
- Não. Olha, sou uma pessoa normal. De dia sou personal trainer, sabia?
- Ahn...
- Gosto de passear, andar no shopping... Vamos marcar de sair?
- Melhor, não.
- Você tá com medo? A gente faz um passeio de gente normal. Toma sorvete...
“Gente normal”. Ela riu e ficou com pena do rapaz.
- Não é nada com você. Mas é melhor assim, uma noite e nada mais.
- Então anota meu telefone... Quem sabe você muda de idéia?
Com ainda mais pena do rapaz, ela anotou. Ele disse que se chamava Ivan, mas na boate o apelido era Pedro. P. salvou o número no celular como Pedro Ivan. De repente, a amiga veio chamá-la.
- Vamos embora?
P. foi se despedir de Pedro Ivan. Mas o coitado estava a pé. Pediu carona até o ponto do ônibus. Então foram os quatro no carro: P., a amiga, a mãe da amiga e o stripper. Deixaram-no no ponto. Ele pegou um ônibus para o Méier. Por alguns minutos, P. se sentiu mal por não ter permitido ao rapaz um encontro “normal”. Ele só queria tomar sorvete!, pensou. Depois, esqueceu. E nunca ligou pra ele.

domingo, março 30, 2008

Ainda dá tempo de consertar

Logo quando aprendeu a ser livre, deixou-se prender novamente.
Pela primeira vez pluri, poli, multi, deu um passo atrás e virou mono.
Hora de retornar com os tentáculos.

terça-feira, março 25, 2008

Dona Zefa: final cut

Chegou-me às mãos um bilhete desaforado de dona Zefa da Portela. Reclamou que o post sobre ela neste blog estava poético demais, sonhador demais, e ela não gosta destas frescuras. Pediu que eu relatasse a história de seu desmaio na quadra, tal e qual se deu. Nada de frufrus nem floreios. A pedidos, então, dona Zefa em final cut.

“Assim, no mapa, parece que é perto. Mas Rio das Pedras é bem longe de Madureira. Dona Zefa que o diga. Passa uma calorenta e apertada hora no famigerado 748, até chegar, com as netas Deusilene e Sandra Sílvia, à quadra da Portela. O samba já começou, e a espevitada senhorinha empurra as netas pra dentro. “Vambora, minhas filhas, que hoje eu sambo até me acabar”. Com uma cerveja na mão, ela cumprimenta as colegas, senhorinhas espevitadas como ela, que freqüentam aquela quadra desde novinhas. “Ô, Deusilene, vem aqui falar com a tia Creide!”. A jovem beija dona Cleide e depois trata de sair dali, prefere ficar com a rapaziada. No meio das amigas, Zefa canta, dança, tem quase tanta agilidade quanto as netas. A cerveja - de garrafa, é claro – roda de mão em mão. Mãos enrugadas que levam o líquido amarelo às bocas também enrugadas, sorridentes.

Na hora da feijoada, dona Zefa come seu pratinho de graça, como sempre. Conhece as cozinheiras, cresceu brincando com elas nas ruas de Madureira. Isso bem antes de casar e se despencar para o Rio das Pedras. Feijoada sempre dá sede. “Creide, pega mais uma garrafa pra gente?”. As senhorinhas bebem. E dançam. Sambam. Sapateiam as sandálias e sapatilhas sujas de lama.

Em cima do palco, dona Zefa vê o neto brilhando. Entre os músicos, Joilson dedilha seu cavaquinho e sorri para a avó. Já sabe o que ela quer: Zeca Pagodinho. O grupo manda ver um sucesso do cantor, e a quadra vem abaixo. Dona Zefa sente o calor da multidão, tão forte que a faz perder o ar. Meio tonta, se esforça para respirar, mas tudo fica preto de repente.

Chamadas às pressas por Cleide, Deusilene e Sandra Sílvia levam a avó para o banheiro. Semidesmaiada, Zefa tem as pernas moles. Seu rosto negro está pálido. “Meu Deus, ela vai morrer!”, chora uma, enquanto a outra abana a avó, já sentada numa cadeira. Pequeno e lotado de mulheres, o banheiro enlameado vira um verdadeiro caos. “Bota ela no chuveiro!”, alguém diz. Deusilene e Sandra Sílvia tiram a roupa da pobre velhinha e a colocam sob a água fria.

Chega um médico. “Quem está passando mal aqui?”. As mulheres – muitas estavam ali por pura curiosidade – apontam o box do chuveiro. Mas as netas escandalosas o impedem de ver dona Zefa. “Ela tá pelada, sai daqui!”, diz Sandra Sílvia, batendo a porta na cara do doutor. “Minha senhora, eu preciso examinar sua avó, abre essa porta”. “Pelada, não!”. “Então botem a roupa nela!”.

Alguém tem a feliz idéia de jogar a roupa de dona Zefa por cima da porta. As netas vestem a avó, que já está recobrando os sentidos. O médico finalmente a examina. Recomenda menos agitação, menos cerveja e menos comida gordurosa. Assustada, Zefa faz que sim com a cabeça.

Um mês depois, porém, lá está dona Zefa de novo. Afinal, ela não é mulher de frufrus e floreios. “Desce mais uma pra gente, Creide!”.

terça-feira, março 11, 2008

Na CDD

Na Cidade de Deus, dizia Buscapé no filme, não dá pra saber o que é pior: encarar os bandidos ou a polícia. Semana passada, ninguém passava ali. Todos os acessos à favela estavam fechados pelos hômi. Tiroteio a madrugada toda. Ônibus e carros precisavam fazer a volta pela Barra.

Mas não quero falar disso agora. Prefiro lembrar da feijoada da Graça.

Era uma tarde de sábado quando cheguei naquela ruela de paralelepípedos. Avistei logo uns amigos com uma latinha de cerveja na mão. Graça, a faxineira da academia, me recebeu toda feliz, era inauguração do boteco dela. Minutos depois eu já estava com minha latinha, batendo papo. Um paredão de caixas de som tocava um pagode, ainda lentinho, só cozinhando o pessoal antes de começar a farra pra valer. Mães levaram cadeiras de praia pra calçada e faziam penteados nos cabelos das filhas. Dois amigos meus jogavam sueca com moradores da CDD. Parei pra espiar o jogo, enquanto batia meu pratão de feijoada preparado pela Graça. Um dos moradores, um mudinho cachaceiro, estava dando um sacode nos playboys. A cada vitória, um gole de caninha, que ele comprava com moedas de 10 centavos retiradas de um saco velho de mercado. Ele jogava, ganhava e bebia. Bebia de novo. Mais uma vez. “Por que você não come?”, perguntei. Ele riu, como se dissesse: “Não vou gastar minhas moedas com isso”. Olhei meu pratão de feijoada que eu não conseguia terminar. Ofereci. “Toma. Não consigo mais”. O Mudinho pegou meu prato, e comeu, feliz. Largou da cana pelo menos até terminar a comida. Um pancadão nervoso começou a tocar. Popozudas de shortinho já se posicionaram em frente à parede de som. Funkeira metida à mãe loura desde os tempos de rádio Manchete, resolvi me meter no meio delas. Dancei, balancei meu popô G até o chão. Não me contentei com a dança, comecei a cantar também. Quando percebi, segurava um microfone e puxava um melô qualquer com voz esganiçada. A galera dançava, se divertia com a MC branquela. A feijoada da Graça era um sucesso. Cansei de pagar mico com “as colega” e fui dançar com os amigos da academia. A essa altura, o Mudinho já tinha terminado a feijoada e requebrava na pista de dança – que era o meio da rua mesmo. Um colega dele, que só tinha uma perna, chegou do lado balançando as muletas de madeira carcomida. Começaram a se estranhar. Mudinho versus Perneta. O povo ria com os empurrões que um dava no outro. Botavam pilha nos dois. Mas a briga não passou disso. Logo eles estavam rindo também, embalados pela cana, pela música e pela alegria de estar ali. Alegria que era dos moradores e dos playbas como eu. A feijoada foi até tarde. Graça estava em estado dela mesma, estado de graça. Com perdão do trocadilho.

Depois deste dia, voltei outra vez lá, para um churrasco. Mas isso já é outra história. Desde então, nunca mais vi Graça. Espero que ela esteja bem e que os hômi não tenham mexido com o boteco dela. Quero voltar lá.

terça-feira, fevereiro 26, 2008

We'll always have Paris

Cansada depois de um dia de caminhadas sob um sol seco, foi surpreendida pelos australianos, animados como cariocas. Uma volta em Montmartre? Oui, pourquoi pas... Andaram pelas ladeiras de paralelepípedos, comeram crème brûlée no café da Amelie Poulain, fotografaram e filmaram, como bons turistas que eram. Depois de visitarem uma loja de vinhos, cada um saiu com uma garrafa de dois euros na mão. Decidiram beber nas escadarias da Sacre-Coeur, importando-se menos com a arte sacra e mais com a deliciosa sensação de ter Paris aos seus pés. Sentados junto com eles, dezenas de jovens do mundo inteiro conversavam, emanando seus espíritos livres a ponto de dar inveja a Nietzsche. Uma chilena que havia morado em São Paulo. Um cubano tentando ser Che. Italianos, ingleses, americanos, brasileiros, fundindo seus mundos, deglutindo-se uns aos outros, entre goladas de vinho e tragadas entorpecentes.

Foi quando Clive, um simpático gordinho australiano de dentes infantis, aproximou-se e puxou assunto com ela. Começaram falando de vinho, depois de viagens, culturas estrangeiras, pinturas – ele disse que era pintor amador. Sensível e delicado, Clive também escrevia, desenhava e lia, lia muito. Ele falou de Thomas Mann. Ela falou de Gabriel Garcia Márquez e Rubem Fonseca. Trocaram emails, links de blogs. Sentiam-se velhos amigos. Na volta para o albergue, ele a fotografou vendo as estrelas. Sim, ele também fotografava. Dias depois, Clive seguiu para Londres e ela para Veneza. Trocaram alguns emails falando de suas viagens. Ele enviou as fotos do grupo na Torre Eiffel. O último email que ela recebeu dele era enorme, falava de Ingrid Bergman e sua famosa frase em Casablanca: We’ll always have Paris. Por falta de tempo, ela não o respondeu.

Meses depois, recebeu uma mensagem de Andrew, um dos australianos do grupo: Clive havia morrido de pneumonia. Triste, ela chorou toda uma tarde. Resolveu entrar no blog dele, tentando encontrar fotos da Cidade Luz. Seu coração quase parou quando viu, em um dos posts, uma imagem. Era uma pintura dela, sentada na porta do albergue, olhando as estrelas.

sexta-feira, fevereiro 22, 2008

Barbara

Sem saber o motivo, começou a pensar no próprio nome. Barbara. Repetiu-o algumas vezes, estranhando a sonoridade. Barbara. Barbara. “Nome bruto”, pensou. Olhou-se no espelho e encarou a imagem. “Então essa sou eu”. Não se reconheceu. Reparou em cada detalhe do rosto refletido: olhos, nariz, boca. O buraquinho no lado esquerdo da bochecha. Esta pessoa era ela, assim como era ela o nome estranho repetido diversas vezes. Mas nada lhe era familiar, nem o nome, nem a imagem. Em seu mundo interior, Barbara era uma figura sem forma, uma sensação, um buraco negro que ora se esticava, ora se encolhia. Não tinha rosto, muito menos uma palavra que a designasse. Ela era seus sentidos, era o que enxergava, ouvia, pegava, comia e cheirava. O espelho lhe mostrou um ser desconhecido. Um ser chamado Barbara, que, por acaso, ela era mesma. Muito prazer.

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

Pequena Miss Sunshine


Quando está tudo escuro, ela se lembra da luz dele. E logo seu rosto se ilumina.
Dias e posts ensolarados estão por vir. Os dois têm certeza disso.
"Let the sunshine, let the sunshine in..."

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

Pode ser a gota d'água

Quando o ar lhe pesava, mergulhava a cabeça n’água e via tudo com uma clareza estarrecedora. De repente, tudo fazia sentido, compreendia os pormenores secretos que a atormentavam, olhava de cima para sua própria vida. Como se ela não fosse ela, fosse outra a olhar a vida alheia. Enxergava cada pedaço com frieza médica, juntava os fios soltos, identificava traumas, apontava soluções, percebia os inimigos. Pesava o necessário e o desnecessário, mesmo sabendo que os conceitos de necessidade mudam sempre. Cristalino, cristalino, como nunca pensara nisso antes? O sentido é que não há sentido, somente o objetivo. Viver seguindo o um, sem buscar o outro.

Percebendo-se afogada, chorou. Cada lágrima pode ser a gota d’água. Um dia vai transbordar tudo de uma vez, ela pensa, submergindo a cabeça.

"Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta..."