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segunda-feira, novembro 08, 2010

1977

Acordou em 1977. No melhor estilo Peggy Sue, mas algumas décadas à frente. Sempre achou que se fosse para voltar ao passado, seria nos anos 20, durante a Belle Epoque, em um café de Paris. Mas se viagens no tempo fossem perfeitas, não haveriam três “De volta para o futuro”.

Bom, 77. Andou nas ruas do Centro admirando a paisagem conhecida, mas ao mesmo tempo estranha. Alguns edifícios não existiam, outros ainda estavam em construção. Os prédios do início do século XX ainda não haviam sido reformados. Muitos estavam caindo aos pedaços. Sentou-se em um boteco da Lapa, pois desde o início da boemia, a Lapa nunca decepcionava.

Pediu uma cerveja. O rótulo vintage e novinho em folha, lindíssimo, faria sucesso em 2010. Um homem sentou-se ao seu lado. “Sozinha, boneca?”. A cafajestagem era a mesma em qualquer época. “O senhor sabe que eu vou nascer daqui a um ano?”, resolveu confundi-lo de propósito. “Só um copo de cerveja e já devaneia, coração?”. Ele tinha o olhar de um gato, e isso não era um elogio. “Meus pais se casaram em 77. A esta altura, já devo ter sido concebida. Em que mês estamos?”.

O homem a olhou de cima a baixo, avaliando se valeria a pena investir em tamanha desvairada. Pousou a mão sobre a dela. “Setembro. Não reparou nas flores, meu botãozinho de rosa?”. Ela retirou sua mão debaixo da dele e virou de uma vez o copo de cerveja. “Neste momento então tenho algumas semanas, sou do tamanho de um grão de feijão”. O talento do malandro parecia não ter fim. “Você é uma feijoada, isso sim, meu torresminho. Quer conhecer minha casa? É logo ali na Riachuelo”.

Riachuelo. Mem de Sá. Gomes Freire. As ruas não era tão diferentes em 77. Talvez mais decadentes. Entrou no apartamento do homem meio sem saber por quê. Era um muquifo cheirando a mofo. Ele era malandro, mas tinha seus galanteios e a cortejava como se fosse uma rainha.

“Vou na cozinha pegar um vinho para nós”, disse o homem, desaparecendo da sala. “E se eu dormir com ele...E se eu engravidar...Meu filho terá sido feito em 77, mas nascerá em 2010. Terá a mesma idade que a mãe?”. Deitou-se na cama de lençóis surrados e sentiu os olhos pesarem. “Eu existo aqui e lá. Meu filho vai existir aqui e lá. Somos um grão de feijão vagando pelo universo”. Sentiu a mão do homem subindo por suas pernas, mas antes que alcançasse as partes íntimas de seu corpo, acordou. Era 2010 novamente.

Ficou nostálgica por dois dias e depois esqueceu. Não por muito tempo. Algumas semanas mais tarde, recebeu a notícia: dentro dela crescia um grãozinho de feijão.

terça-feira, julho 15, 2008

14 latão

Terminal Rodoviário Menezes Cortes, centro do Rio. Uma bêbada entra no banheiro e pede a uma sóbria que está ali para segurar a porta, que não tem trinco.

Bêbada: Segura pra mim. Esse banheiro dá muito tarado.

Sem alternativa, a sóbria segura a porta imunda.

Bêbada: Colega, tô bebinha...Também, desde 7 horas da manhã no goró!

São cinco da tarde.

Sóbria: Você tá bebendo há dez horas??

Bêbada: É que eu trabalho na barraca ali na frente.

Sóbria: De bebida?

Bêbada: Não, de doce. Mas tem a barraca do lado, né? Aí eu vendo um pouquinho, bebo um pouquinho... Só hoje foram 14 latão e 3 quente!

Sóbria: Mentira!

Bêbada: Verdade! Te juro pra você.

A bêbada dá a descarga.

Sóbria: Se eu bebo 14 latões, saio carregada. É muita coisa!

Bêbada: Ah, que isso... 14 latão tu num guenta? Nem 14 latinha?

Sóbria: Nem latão nem latinha.

Bêbada abre a porta da cabine.

Bêbada: Tu é fraca, hein, colega!

Sóbria: Tu que é sinistra, colega...

Bêbada: É só beber coca-cola e chupar muita bala.

Sóbria: E engov? Sonrisal?

Bêbada: Isso é balela, minha filha. Tem que botar é açúcar no sangue. Depois chega em casa e dá um trato no marido.

Sóbria: Ele não reclama não?

Bêbada: Reclamar de quê? Tô botando dinheiro em casa. Ai dele se der um ai.

Sóbria: Tá certa... Bem, vou lá!

Bêbada: Valeu, colega! Vai treinando em casa que tu consegue. Depois vem aqui competir comigo.

A bêbada ri, sabendo que aquela sobriazinha fajuta nunca seria páreo para ela.

Sóbria: Ah, pode deixar. Quando eu fizer 14 latões, falo contigo.

Bêbada: Aí vai ser tarde demais. Essa noite eu chego nos 20.

A sóbria acha graça e trata de sair dali. Pega um frescão de 6 reais. A bêbada volta para a barraquinha de doces, onde segue rumo aos 20 latões.