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segunda-feira, fevereiro 21, 2011

Self bullying

Levou um susto. Com o mundo girando e acontecendo a seu redor, estava há tempos surdo de sua própria voz. Cometeu a besteira de andar sozinho do metrô para casa em um dia de tempestade e não gostou do que ouviu. Sentiu-se o clichê mais óbvio quando chorou e as lágrimas se misturaram na chuva. Claro que os passantes o ignoraram, os cachorros vira-latas não cheiraram seus pés, os entregadores de papelzinho o abstrairam, ninguém sorriu ou sentiu pena dele. Só ele mesmo. Queria olhar-se à distância para ver quão coitadinho era, tão pequenino e sozinho no meio da multidão. Não deveria ter dado ouvidos aos próprios pensamentos, é tão mais fácil quando a vida segue seu rumo e ele é simplesmente levado, confortably numb. Confortably sorry, confortably painful. No fundo desejava ser ignorado, para poder chorar feliz o prazer de ser deixado de lado. Chegava a imaginar conversas alheias: "Olhe lá, o pobrezinho. Teve tudo e não soube aproveitar". Quem sabe não seria um gauche na vida como Carlos Drummond de Andrade? "Não seja ridículo, você não tem talento para isso". Sabe que é doente. Aguarda, ansioso, pelo dia em que ficará curado. Ou então - e essa possibilidade faz seus olhos brilharem - com o fim de seus dias na sarjeta, sujo e anuviado, ouvindo somente suas vozes internas .

quinta-feira, dezembro 02, 2010

Blá uma ova! ou O Japonês de Terno Puído (parte 3)

Sua cabeça ainda rodava quando fechou a porta de casa com a chave e todas as travas e trincos possíveis. A conversa com o Japonês de Terno Puído, - que agora tinha nome, Ishii Kondo -, naquele restaurante oriental malcheiroso da Paulista estava mais surreal do que filme de Buñuel e David Lynch juntos. Precisava ligar para alguém e contar tudo, mas duvidava que acreditariam. “É bem-feito”, pensou. Ninguém mandou reclamar tanto da vida, dizer que tudo era chato, ouvir “Tédio” do Biquíni Cavadão vinte vezes por dia e sentir pena de si mesma por ninguém querer ir com ela à mostra do Fassbinder. Agora, sim, sua vida estava uma loucura, “Valha-me minha santa Narcisa Tamborindeguy”.

Não conseguia parar de pensar naquele japinha assustador, o cabelo Jaspion e todo aquele papo de dossiê de 503 páginas. Sim, ela passou anos de sua vida sendo avaliada por ele. Pensando bem, 503 páginas era até bem pouco pelo tanto de tempo que o Japonês, ou melhor, Ishii Kondo, havia investido. “Eu merecia mais de mil páginas, pô”. Também, seus dias eram tão repetitivos que provavelmente o pesquisador deu “control V” e “control C” em várias partes. “Hoje ela acordou, comeu um queijo-quente de queijo minas, tomou um banho de 8 minutos, penteou a sobrancelha com o dedo molhado de saliva e foi trabalhar.” Não, o dossiê não poderia ter tais detalhes íntimos sobre sua vida dentro de casa. Ou poderia?

Não importa, o que importa mesmo é que resolveu não denunciar o japa à polícia e aceitou o convite para um encontro seguinte, agora com o mestre, onde mais detalhes da pesquisa seriam revelados. Putz, ela precisava ligar para alguém, defintivamente. Queria contar tudo, até mesmo para ter quem a salvasse caso sumisse no mundo. Na verdade queria contar mesmo pelo puro prazer de contar. Sim, finalmente sua vida era animada, ha ha. Uma lição para quem a chamou de sonsa, chatinha, desanimada, blá. Odiava quando era chamada de blá. “Quem é blá agora? Eu tenho um dossiê de 503 páginas e você? Nada!”.

Pegou-se rindo sozinha no apartamento trancado à chave, travas e trincos. Resolveu fuxicar cada canto à procura de câmeras, microfones, buracos suspeitos. Se o dossiê do Japonês de Terno Puído incluía suas intimidades indoor, ela tinha que saber como era vista. Até para passar um batonzinho e não soltar aqueles gases inocentes que não faziam mal a ninguém. Riu de novo. Enquanto revirava o apartamento, pensou no encontro com o mestre de Ishii Kondo. Era dali a dois dias. “Vou ligar pra alguém. Agora”.

segunda-feira, novembro 08, 2010

1977

Acordou em 1977. No melhor estilo Peggy Sue, mas algumas décadas à frente. Sempre achou que se fosse para voltar ao passado, seria nos anos 20, durante a Belle Epoque, em um café de Paris. Mas se viagens no tempo fossem perfeitas, não haveriam três “De volta para o futuro”.

Bom, 77. Andou nas ruas do Centro admirando a paisagem conhecida, mas ao mesmo tempo estranha. Alguns edifícios não existiam, outros ainda estavam em construção. Os prédios do início do século XX ainda não haviam sido reformados. Muitos estavam caindo aos pedaços. Sentou-se em um boteco da Lapa, pois desde o início da boemia, a Lapa nunca decepcionava.

Pediu uma cerveja. O rótulo vintage e novinho em folha, lindíssimo, faria sucesso em 2010. Um homem sentou-se ao seu lado. “Sozinha, boneca?”. A cafajestagem era a mesma em qualquer época. “O senhor sabe que eu vou nascer daqui a um ano?”, resolveu confundi-lo de propósito. “Só um copo de cerveja e já devaneia, coração?”. Ele tinha o olhar de um gato, e isso não era um elogio. “Meus pais se casaram em 77. A esta altura, já devo ter sido concebida. Em que mês estamos?”.

O homem a olhou de cima a baixo, avaliando se valeria a pena investir em tamanha desvairada. Pousou a mão sobre a dela. “Setembro. Não reparou nas flores, meu botãozinho de rosa?”. Ela retirou sua mão debaixo da dele e virou de uma vez o copo de cerveja. “Neste momento então tenho algumas semanas, sou do tamanho de um grão de feijão”. O talento do malandro parecia não ter fim. “Você é uma feijoada, isso sim, meu torresminho. Quer conhecer minha casa? É logo ali na Riachuelo”.

Riachuelo. Mem de Sá. Gomes Freire. As ruas não era tão diferentes em 77. Talvez mais decadentes. Entrou no apartamento do homem meio sem saber por quê. Era um muquifo cheirando a mofo. Ele era malandro, mas tinha seus galanteios e a cortejava como se fosse uma rainha.

“Vou na cozinha pegar um vinho para nós”, disse o homem, desaparecendo da sala. “E se eu dormir com ele...E se eu engravidar...Meu filho terá sido feito em 77, mas nascerá em 2010. Terá a mesma idade que a mãe?”. Deitou-se na cama de lençóis surrados e sentiu os olhos pesarem. “Eu existo aqui e lá. Meu filho vai existir aqui e lá. Somos um grão de feijão vagando pelo universo”. Sentiu a mão do homem subindo por suas pernas, mas antes que alcançasse as partes íntimas de seu corpo, acordou. Era 2010 novamente.

Ficou nostálgica por dois dias e depois esqueceu. Não por muito tempo. Algumas semanas mais tarde, recebeu a notícia: dentro dela crescia um grãozinho de feijão.

quinta-feira, outubro 01, 2009

O japonês do terno puído

Já tinha topado com loucos a dar com o pau, loucos de pedra e de bebida, gente que falava sozinha na rua. Na terra estrangeira onde morava havia pouco, os olhos alheios a assombravam. Sabia que se cruzasse olhares com os errantes perdidos nos quarteirões e terminais rodoviários seria perigoso, quase fatal: “olhe e enlouqueça!” Mas mesmo com todo cuidado para não tocar a vil realidade, ela sofreu com xingamentos esdrúxulos no metrô, levou um soco no braço ao passar rapidamente entre um sujeito e o muro. Era constantemente interrompida em suas viagens abstratas por pessoas ainda mais abstratas que ela, a ponto de achar que ela própria havia enlouquecido.

Mas nada foi tão tenebroso quanto ser perseguida pelo japonês do terno puído. Não era noite, não estava escuro nem deserto. Talvez fizesse sol, o que, para ela, funcionava como blindagem contra sentimentos tristes. Ao caminhar na rua, sentiu passos próximos, até que a pessoa colocou-se a seu lado, a um metro de distância. Os passos dele casaram-se aos dela, pareciam fazer parte de um número de passos sincronizados. Ela se adiantou, aumentou a velocidade, odiava caminhar com desconhecidos. Mas o homem acelerou, até estar alinhado com ela novamente. Ela decidiu retardar o passo, e viu o estranho passar à frente: era um japonês alto, de cabelo cortado como nos anos 80, vestindo um terno puído que talvez fosse da mesma época. Tinha apenas um guarda-chuva na mão, e olhou discretamente para trás quando se viu sozinho. Reduziu suas passadas. Nervosa, ela parou em frente a uma banca de jornais, fingindo ler manchetes. Poucos metros adiante, o homem também parou.

Estava confirmado: aquilo era perseguição, e das brabas. Tentou tranquilizar-se pensando que o japonês só tinha um guarda-chuva na mão, e que isso ela também tinha na bolsa, caso ele decidisse atacá-la. Mas sabe-se lá que tecnologia japonesa o guarda-chuva oriental escondia. Podia ser uma arma letal. Uma bomba, ou um spray de pimenta disfarçado. Desesperou-se. Começou a caminhar rapidamente na direção contrária. Se ele a imitasse, gritaria “socorro”. Lembrou que sua mãe sempre a ensinou a gritar “Fogo!”, pois chamava mais atenção. Mas quem acreditaria num incêndio em plena calçada às 4 da tarde? De rabo de olho, percebeu o terno puído indo atrás dela, implacável. Aproveitou o sinal aberto e atravessou a rua, como louca, correndo sem olhar para trás.

Entrou no shopping ofegante, escondeu-se na pilastra de espelhos, onde ficou por alguns minutos. De repente encarou uns olhos assustados, que logo percebeu serem dela. Estava descabelada, pálida como um fantasma, os botões da camisa abertos, como se os seios quisessem fugir também. Não viu mais o japonês, mas nunca mais deixou de olhar em volta quando sai de casa. Assim como os mendigos loucos que vivem nas ruas, talvez ele ainda a observe, tramando enlouquecê-la junto com todo o resto.

segunda-feira, fevereiro 16, 2009

A fobia de Quito

Quito pensou três vezes antes de entrar na livraria. Sabia que, quando ultrapassasse a porta de vidro seria tomado por sentimentos confusos e autodestrutivos. As estantes e seus livros ameaçadores jogariam na cara dele toda sua futilidade. As linhas já escritas pelo homem desde que o mundo é mundo serviriam-lhe como decreto: tudo que merecia já foi escrito. Até o que não merecia também, e Quito não queria fazer parte do grupo dos escritores banais que escrevem o que não merece ser lido. A porta de vidro abria e fechava, com leitores entrando e saindo com pacotes nas mãos. O que tanto eles compravam? Que livros são esses que os fizeram tirar dinheiro do bolso? Quito já escreveu tanto, e só para si mesmo. Nunca teve culhão de publicar seus atabalhoados pensamentos, temperados pelos anos de solidão e esquizofrenia. No entanto, os livros abarrotados na estante lhe diziam, era possível vomitar idéias e deixá-las à mostra. E daí? Quem iria querer se ocupar de suas letrinhas? Quito estava parado, a porta abrindo e fechando, o segurança olhando de cara feia. Ele não iria conseguir. Deu um passo para frente. Deu dois. E a livraria o sugou para dentro. Estava feito, Quito parou perante as estantes, sentiu-se sufocado, humilhado, diminuído. Pensou no colo de sua mãe. Era tão mais fácil na infância, quando os livros eram seus companheiros, e não objetos para uma autoanálise. Resolveu buscar forças onde não tinha, pegou uma dezenas deles e foi para a fila do caixa. “Estes livros não vão mais judiar de mim”. Lembrou-se do velho ditado, se não pode vencê-los, junte-se a eles. Saiu da livraria carregado de volumes, de mãos dadas com Virginia Woolf, Mark Twain, Caio Fernando Abreu, Saramago e outros antigos sufocadores. Eram seus amigos, mais uma vez.

segunda-feira, janeiro 05, 2009

Suco de bobagens

Seu Ananias desceu as escadas lépido como um coelho. “Nunca me senti tão bem. Meu filho, me traz aqueles pesos que eu tô querendo ficar forte hoje”. Alberto estranhou o vigor do pai, minutos atrás estava prostrado no sofá vendo Discovery Channel. “You and me, baby, we’re nothing but mammals, so let’s do it like they do on the Discovery Channel”. “Pai, o que é isso??”. Seu Ananias estava cantando e rodopiando no meio da sala. Alberto se assustou e foi ter com a mãe na cozinha. Algo estranho estava acontecendo com seu pai. “Filhinho, me ajuda aqui. Estas panelas estão todas tortas, não servem mais”. Dona Rosinda estava agachada em frente ao armário da cozinha se livrando de todas as panelas de que cuidou carinhosamente por toda vida. “Mãe, como a senhora vai cozinhar se jogar todas as suas panelas no lixo?”. Dona Rosinda, sem parar o que estava fazendo, simplesmente disse: “E quem precisa comer aqui, meu filho? Cada um pode caçar sua própria comida. O homem tem garras e dentes pra quê, me diz? Além disso, eu acabei de concluir que todos podemos ser vegetarianos. Comer só frutas, verduras e legumes crus. Comer carne é crime, você já pensou?”. Alberto não conseguiu dizer uma palavra. Até porque sua mãe continuou a verborragia, “É crime, meu filho. São animais assa-ssi-na-dos. Morte matada. E eu não vou mais compactuar com isso. Vá. Vá chamar seu pai que ele vai se livrar dessas panelas para mim”. Alberto, achando que o mundo tinha enlouquecido, voltou para a sala e lá estava seu Ananias fazendo uma dança estranha de frente para a TV. “Albertinho, meu filho, descobri que minha dança sensual enlouquece as mulheres. Tá vendo ela ali? Não para de rir. Tá no papo”. Alberto foi conferir quem era a mulher na televisão que estaria louquinha pelo seu pai. Era a Xuxa, em uma reprise de um programa bizarro qualquer dos anos 80. Ela tomava um sorvete e olhava rindo para a câmera. “Veja, filho, veja como ela me quer”. E seu Ananias rebolava de frente para a tela, deixando o rapaz vermelho de vergonha. Alberto subiu as escadas, de dois em dois degraus. Precisava de alguém para compartilhar aquele inferno todo. O mundo enlouqueceu e ele era o único normal? Entrou no quarto de Alípio, o irmão mais novo. “Cara, tem uma coisa surreal rolando lá embaixo e você precisa...”. Não terminou a frase. Alípio estava pelado em frente a janela, balançando seus pertences para quem quisesse ver. “Caralho, sai daí, pelo amor de Deus. Até você?”. Alberto olhou para a rua e uma pequena multidão se aglomerava em frente à sua casa. “Tira! Tira! Tira!”, gritavam os passantes, em polvorosa. Alberto puxou o irmão e o enrolou em uma toalha. “Alípio, olha pra mim. O que está acontecendo?”. O garoto começou a rir. Riu sem parar, por minutos, deixando Alberto desesperado e irritado. Agarrou o irmão pelos braços e o sacudiu: “Puta que pariu, o que é isso?”. Ainda rindo convulsivamente, Alípio respondeu: “É o suco, cara. Você não tomou o suco?”. “Que suco??”. “O suco de laranja que eu fiz. Você não tomou, né? Hahahaha! Não mesmo, dá pra ver! Você tá puto, né, brother?”. E seguiu rindo até quase não se agüentar. Alberto entendeu, então, a razão para aquele surto coletivo em sua família. O irresponsável do seu irmão havia colocado ácido no suco de laranja. Seus pais tomaram e enlouqueceram. Alípio, claro, pirou. E Alberto agora era o único normal dentro de sua própria casa. Logo ele, o filho-problema, o doidão da família. Agora estavam todos provando do próprio veneno, e até mesmo gostando. Hipócritas. “Valeu, irmão. Agora quero ver todo mundo chafurdando no doce”, disse Alberto. Desceu as escadas, passou pelo pai, que naquele momento estava copulando com uma almofada, tal qual um cão, passou pela cozinha, onde sua mãe, deitada no chão, gritava de alegria que estava num mar de panelas, e foi para a rua. Voltou somente no dia seguinte, em silêncio, quando tomou café-da-manhã com a mãe e o pai, envergonhados. Alípio sorriu, maroto, e piscou para Alberto em cumplicidade.