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segunda-feira, fevereiro 21, 2011

Self bullying

Levou um susto. Com o mundo girando e acontecendo a seu redor, estava há tempos surdo de sua própria voz. Cometeu a besteira de andar sozinho do metrô para casa em um dia de tempestade e não gostou do que ouviu. Sentiu-se o clichê mais óbvio quando chorou e as lágrimas se misturaram na chuva. Claro que os passantes o ignoraram, os cachorros vira-latas não cheiraram seus pés, os entregadores de papelzinho o abstrairam, ninguém sorriu ou sentiu pena dele. Só ele mesmo. Queria olhar-se à distância para ver quão coitadinho era, tão pequenino e sozinho no meio da multidão. Não deveria ter dado ouvidos aos próprios pensamentos, é tão mais fácil quando a vida segue seu rumo e ele é simplesmente levado, confortably numb. Confortably sorry, confortably painful. No fundo desejava ser ignorado, para poder chorar feliz o prazer de ser deixado de lado. Chegava a imaginar conversas alheias: "Olhe lá, o pobrezinho. Teve tudo e não soube aproveitar". Quem sabe não seria um gauche na vida como Carlos Drummond de Andrade? "Não seja ridículo, você não tem talento para isso". Sabe que é doente. Aguarda, ansioso, pelo dia em que ficará curado. Ou então - e essa possibilidade faz seus olhos brilharem - com o fim de seus dias na sarjeta, sujo e anuviado, ouvindo somente suas vozes internas .

quinta-feira, dezembro 02, 2010

Blá uma ova! ou O Japonês de Terno Puído (parte 3)

Sua cabeça ainda rodava quando fechou a porta de casa com a chave e todas as travas e trincos possíveis. A conversa com o Japonês de Terno Puído, - que agora tinha nome, Ishii Kondo -, naquele restaurante oriental malcheiroso da Paulista estava mais surreal do que filme de Buñuel e David Lynch juntos. Precisava ligar para alguém e contar tudo, mas duvidava que acreditariam. “É bem-feito”, pensou. Ninguém mandou reclamar tanto da vida, dizer que tudo era chato, ouvir “Tédio” do Biquíni Cavadão vinte vezes por dia e sentir pena de si mesma por ninguém querer ir com ela à mostra do Fassbinder. Agora, sim, sua vida estava uma loucura, “Valha-me minha santa Narcisa Tamborindeguy”.

Não conseguia parar de pensar naquele japinha assustador, o cabelo Jaspion e todo aquele papo de dossiê de 503 páginas. Sim, ela passou anos de sua vida sendo avaliada por ele. Pensando bem, 503 páginas era até bem pouco pelo tanto de tempo que o Japonês, ou melhor, Ishii Kondo, havia investido. “Eu merecia mais de mil páginas, pô”. Também, seus dias eram tão repetitivos que provavelmente o pesquisador deu “control V” e “control C” em várias partes. “Hoje ela acordou, comeu um queijo-quente de queijo minas, tomou um banho de 8 minutos, penteou a sobrancelha com o dedo molhado de saliva e foi trabalhar.” Não, o dossiê não poderia ter tais detalhes íntimos sobre sua vida dentro de casa. Ou poderia?

Não importa, o que importa mesmo é que resolveu não denunciar o japa à polícia e aceitou o convite para um encontro seguinte, agora com o mestre, onde mais detalhes da pesquisa seriam revelados. Putz, ela precisava ligar para alguém, defintivamente. Queria contar tudo, até mesmo para ter quem a salvasse caso sumisse no mundo. Na verdade queria contar mesmo pelo puro prazer de contar. Sim, finalmente sua vida era animada, ha ha. Uma lição para quem a chamou de sonsa, chatinha, desanimada, blá. Odiava quando era chamada de blá. “Quem é blá agora? Eu tenho um dossiê de 503 páginas e você? Nada!”.

Pegou-se rindo sozinha no apartamento trancado à chave, travas e trincos. Resolveu fuxicar cada canto à procura de câmeras, microfones, buracos suspeitos. Se o dossiê do Japonês de Terno Puído incluía suas intimidades indoor, ela tinha que saber como era vista. Até para passar um batonzinho e não soltar aqueles gases inocentes que não faziam mal a ninguém. Riu de novo. Enquanto revirava o apartamento, pensou no encontro com o mestre de Ishii Kondo. Era dali a dois dias. “Vou ligar pra alguém. Agora”.

quinta-feira, novembro 11, 2010

O Japonês de Terno Puído ataca novamente

Após o episódio da perseguição na Avenida Paulista, o Japonês de Terno Puído frequentou seus mais terríves pesadelos por alguns meses. Aos poucos foi se dissolvendo e virou um borrão em sua memória, sendo até substituído por outros loucos da região.

Mas, eis que um dia, caminhando na galeria entre a Brigadeiro e a Manoel da Nóbega, o homem se materializou em sua frente. O mesmo terno, o mesmo cabelo crespo (nunca ouviu falar de japonês de cabelo ruim. Ah, sim. O Jaspion) e o mesmo guarda-chuva-suspeito-suposta-arma-letal com que ele a ameaçara tempos atrás. Desta vez, o Japonês de Terno Puído foi ousado e dirigiu-lhe a palavra.

“Você passa aqui todo dia, né?”, disse, com um sotaque impossível de transcrever. Ela gelou. Estaria ele a perseguindo durante todo esse tempo? Ela baixou a cabeça e seguiu em frente, mas o homem acelerou os passinhos, quase como uma gueixa, e a alcançou. “Vem almoçar comigo, né? Você gosta daquele restaurante ali, né?”. E apontou para o local onde ela almoçava quase diariamente. “Por que você está me seguindo? Quem é você?”, ela perguntou, finalmente.

O Japonês empombou-se todo e fez uma reverência abaixando o tronco para frente. “Meu nome é Ishii Kondo e trabalho em uma empresa que estuda as pessoas, né? Você é minha... meu objeto de estudo, né?”.

Ora essa, objeto de estudo? “Eu vou chamar a polícia”, disse ela.

“Calma, moça amarela não precisa se assustar”.

“Que amarela? Você é o japonês aqui, ô”.

Ela começou a olhar para os lados, pronta para gritar caso ele lhe direcionasse o guarda-chuva letal.

“Moça do cabelo amarelo deve saber que eu estou aqui em missão de paz. Vim de muito longe para estudar você, né? Meu mestre me mandou aqui. Ele gostou muito da pesquisa que entreguei, foram 500 páginas. Não, 503 páginas sobre a moça amarela. Muito satisfeito, o mestre.”

A história ficava cada vez mais estranha. A moça amarela, digo, ela, tinha medo, mas também estava muito curiosa para saber quem era o tal mestre e por que diabos ele mandou o Japonês de Terno Puído persegui-la.

Aceitou o convite do seu perseguidor e foi comer um rolinho primavera no restaurante em frente. Um olho no guarda-chuva do japonês de cabelo duro. Outro no hashi em cima da mesa. Se fosse preciso, ela enfiaria o pauzinho naquele olho puxado.

segunda-feira, novembro 08, 2010

1977

Acordou em 1977. No melhor estilo Peggy Sue, mas algumas décadas à frente. Sempre achou que se fosse para voltar ao passado, seria nos anos 20, durante a Belle Epoque, em um café de Paris. Mas se viagens no tempo fossem perfeitas, não haveriam três “De volta para o futuro”.

Bom, 77. Andou nas ruas do Centro admirando a paisagem conhecida, mas ao mesmo tempo estranha. Alguns edifícios não existiam, outros ainda estavam em construção. Os prédios do início do século XX ainda não haviam sido reformados. Muitos estavam caindo aos pedaços. Sentou-se em um boteco da Lapa, pois desde o início da boemia, a Lapa nunca decepcionava.

Pediu uma cerveja. O rótulo vintage e novinho em folha, lindíssimo, faria sucesso em 2010. Um homem sentou-se ao seu lado. “Sozinha, boneca?”. A cafajestagem era a mesma em qualquer época. “O senhor sabe que eu vou nascer daqui a um ano?”, resolveu confundi-lo de propósito. “Só um copo de cerveja e já devaneia, coração?”. Ele tinha o olhar de um gato, e isso não era um elogio. “Meus pais se casaram em 77. A esta altura, já devo ter sido concebida. Em que mês estamos?”.

O homem a olhou de cima a baixo, avaliando se valeria a pena investir em tamanha desvairada. Pousou a mão sobre a dela. “Setembro. Não reparou nas flores, meu botãozinho de rosa?”. Ela retirou sua mão debaixo da dele e virou de uma vez o copo de cerveja. “Neste momento então tenho algumas semanas, sou do tamanho de um grão de feijão”. O talento do malandro parecia não ter fim. “Você é uma feijoada, isso sim, meu torresminho. Quer conhecer minha casa? É logo ali na Riachuelo”.

Riachuelo. Mem de Sá. Gomes Freire. As ruas não era tão diferentes em 77. Talvez mais decadentes. Entrou no apartamento do homem meio sem saber por quê. Era um muquifo cheirando a mofo. Ele era malandro, mas tinha seus galanteios e a cortejava como se fosse uma rainha.

“Vou na cozinha pegar um vinho para nós”, disse o homem, desaparecendo da sala. “E se eu dormir com ele...E se eu engravidar...Meu filho terá sido feito em 77, mas nascerá em 2010. Terá a mesma idade que a mãe?”. Deitou-se na cama de lençóis surrados e sentiu os olhos pesarem. “Eu existo aqui e lá. Meu filho vai existir aqui e lá. Somos um grão de feijão vagando pelo universo”. Sentiu a mão do homem subindo por suas pernas, mas antes que alcançasse as partes íntimas de seu corpo, acordou. Era 2010 novamente.

Ficou nostálgica por dois dias e depois esqueceu. Não por muito tempo. Algumas semanas mais tarde, recebeu a notícia: dentro dela crescia um grãozinho de feijão.

terça-feira, agosto 04, 2009

Chaplins alucinados

Deita-se conformado. Mais uma noite de zumbido o espera, aquele vindo de dentro, ouvido sempre que se sente fora do eixo. Pensa que o barulho vem das traquitanas de seu cérebro, mexendo-se desconexas, como se chaplins escorregassem alucinados por suas engenhocas. Para lubrificar as porcas e parafusos, talvez leite quente dê cabo. Talvez cantar espante o zumzumzum. Pensa em Elvis, “Sweet Caroline”. Depois sussurra “Suspicious Minds”. Mas o Grande Ditador não deixa o Rei tomar conta, e intensifica os zumbidos. Pensa em apelar para comprimidos. Mas é tão medroso que prefere ficar na companhia de seus chaplins esquizofrênicos, desejando que eles sejam tão geniais quanto o bigodudo de bengala. Mas consciente de que são apenas reles peças dos Tempos Modernos.

sábado, maio 16, 2009

Epifania matinal de inverno

Às vezes eu olho tudo de longe, como se não fizesse parte do todo. Só assim consigo enxergar a importância das coisas. Sinto uma pena tão grande que tenho vontade de colocar todos no colo, cuidar e dizer: vai passar. It’s all so beautiful and so sad. E tão misterioso que vai além da minha compreensão. Se bem que às vezes sinto entender tudo, e tenho raiva por choramingar à toa. Se ao menos olhar tudo de longe me fizesse sair do lugar...

sexta-feira, maio 01, 2009

A caligrafia

Aconteceu num inverno qualquer da primeira década de 2000. Veio de repente no meio da penumbra, jogou-me contra a parede e perfurou minha alma com seus olhos distantes. Olhos de passado, de quem já foi e não estava mais ali. Parecia que o conhecia, mas forcei a memória e não encontrei nada parecido com ele. Tirou uma carta amassada do bolso, esfregou-a na minha cara.  Sua expressão era de dor e pavor, ele tinha medo de mim, e ao mesmo tempo uma raiva contida prestes a explodir.

“Quem é você?”, perguntei, mas ele disse que não tinha muito tempo. “Assim que eu sair, você lê”. A carta pressionada contra meu corpo, as lágrimas dele começando a rolar. “Quem é você?”, eu perguntava, tentando encontrar a resposta naqueles olhos familiares, malditos olhos, de onde vem? Ele me abraçou forte, aconchegou-se em meu colo como se sempre o tivesse feito, e esse ato me pareceu corriqueiro como acordar todos os dias e escovar os dentes.

 Num rompante ele se separou de mim, saiu de repente como havia chegado e desapareceu na penumbra. Na mesma hora abri o envelope amassado, era uma carta velha, mas estranhamente datava de 2032. Era de despedida, e dizia “Meus filhos, não me vejo mais neste mundo. Perdoem-me”. A caligrafia suicida era conhecida, as letras, apesar de tremidas, eram familiares. Fiquei completamente sem ar. Afinal, eu conhecia muito bem a pessoa que escreveu a carta... Era eu mesma. 

Alguns anos depois do dia em que ele me perfurou com seus olhos de passado, tenho-o novamente em meus braços. É um bebê, recostado em meu colo, olhando-me com olhos familiares. Entendi que não eram olhos de passado, eram olhos de futuro, de quem seria e ainda não estava lá. Mas, ainda assim, na penumbra, ele me salvou de mim mesma.

quinta-feira, abril 16, 2009

Vivian Vazz é uma geminiana confusa


Ela tem cerca de 25 anos. Mora em um convento, mas ainda está pensando se vai transformar-se em freira ou não. Faz dele um refúgio. Sua origem é uma incógnita, mas suas dores ela conta através das palavras no blog Trigêmeas, ao lado de duas amigas. Pelo que já foi escrito, seu melhor amigo do mundo lá fora se chama Horácio. A companheira no convento é Irmã Rosário. E Fred é um carma que ela carrega desde adolescente.

Assim ela se autodefine:

"Preciso dos opostos, do 8 e do 80, do frio e do calor para me transformar em minha principal antagonista. Freira de corpo, louca da alma."

Quem quiser uma pitada desta alma, clique aqui

segunda-feira, março 23, 2009

Cecília & Nico

Cecília estava sozinha em casa quando ligou o rádio. O silêncio sempre a incomodou tanto que nunca se permitiu ficar segundos em suspenso. Seu medo era ouvir os próprios pensamentos, nem sempre agradáveis, muitas vezes acusatórios. Apertou o botão esperando que tocasse qualquer coisa, qualquer som, não interessava qual. Interessava que a música tocasse e a tirasse de seu mundo interior. Mas o aparelhinho, traiçoeiro, quis que Cecília ouvisse uma voz muito mais intrigante que a sua própria. O rádio tocou Nico. “Femme Fatale”. Nico e Velvet. Sombria, sexy, atormentada. Here she comes, you better watch your step/She’s going to break your heart in two, it’s true… Cecília sentiu Nico pegando seu coração com as mãos e apertando, como quem dissesse: “Você não pode escapar de sentir, minha cara. Não pode viver impunemente sem silêncio”. Cecília forçou a respiração, conseguiu escapar das mãos de Nico. Mas a voz… Cause everybody knows (she’s a femme fatale)/The things she does to please (she’s a femme fatale)/ She’s just a little tease (she’s a femme fatale)/See the way she walks/Hear the way she talks… Quanta dor aquela mulher carregava na voz, e Cecília só conseguia pensar que devia parar de fugir. Não tinha mais idade para alienar-se. Just look into her false colored eyes... Os olhos de Cecília arregalados, momento de epifania. Era alívio, era luz no fim do túnel, o recado de Nico era simplesmente “Pare de fugir”. Desligou o rádio e finalmente ouviu.

domingo, março 01, 2009

Operación Madalena

Querido diário,

Estou cansada do que tenho entre as pernas. Como algo pode ser tão inútil? Pior: como alguns se satisfazem com isso? Ao contrário das pessoas que conseguem dar sentido a este “estorvo” – algumas amigas chegam a fazer dinheiro - , eu sou radical. Não gosto, não quero e pronto. Isso não me pertence, parece que foi colocado em mim por algum ET quando eu era criança e fui abduzida. Gostaria de ter mais lembranças deste dia, deve ter sido divertido. Não para mim, mas para as malditas bichas alienígenas que modificaram meu corpo e me acrescentaram “isto”. Se soubessem os problemas psicológicos que me causaram... Toda vez que me olho nua no espelho me sinto um freak, um weirdo, e todos estes adjetivos do Radiohead. I don't belong here.

Tenho sonhos confusos, às vezes sonho que tenho barba. Outras que meu peito sumiu. Imagine... 400 ml de silicone não desapareceriam assim, de repente. Mas no meu sonho, costumo ficar mais despeitada que a Kate Moss. E olha que nem cheiro. Uma vez sonhei que me chamavam de Cauby Carlos. Pesadelo! Ele já morreu faz tempo. Hoje só existe Madalena, Madá, e ai de quem ressuscite Cauby Carlos, nome cafona dos infernos.

Quando estou assim, nervosa, tento relaxar com Almodóvar. Eu sei, é o clichê das bichas arrasadas – não o Almodóvar, mas ver Almodóvar quando se está deprimida. Mas, quer saber? Só pioro, e ainda mais que lembro de mamãe. Ela ficou de me dar dinheiro para a operação, mas empacotou antes, a danada. Acho que preferiu morrer de desgosto do que ver seu Caubyzinho – afe! – virar Madá. Mas, mamy, onde quer que você esteja, só tenho uma coisa a lhe dizer: já era. Não vou abandonar meu sonho, nem que você venha especialmente do inferno para me assombrar. Mamacita querida.

Bem, dear diary, cansei. Cansei de ser sexy, de ser homem, de tudo. Cansei de ser uma alma atormentada. Preciso de dinheiro para a operação e vou conseguir. Nem que eu tenha que fazer como algumas amigas e usar o “estorvo” para faturar.

Love,Madalena

quinta-feira, fevereiro 26, 2009

Pushing Daisies

Foi arrancada com tanta força da terra que sentiu frio nas raízes. A última coisa que se lembra é de seu desejo de cravar-se no solo, mas não de maneira definitiva. Queria ser um animal que não se apega, queria conhecer os campos que iam além de sua vista turva. Nos dias mais tristes, sentia água escorrendo-lhe das folhas, o caule doía lá dentro, e as raízes... Malditas, sempre presas, fincadas à terra molhada, impedindo-a de ir longe. Quando foi arrancada, sentiu o cheiro do frio, acreditou que seria levada para outros campos, mas quando deu-se por si estava em um pequeno vaso, e suas raízes compridas tocavam o plástico, e só via água se uma senhorinha grisalha a regasse. Reclamou tanto de estar presa ao solo, sem saber que pior do que isso era depender de um ser humano para viver.

segunda-feira, fevereiro 16, 2009

A fobia de Quito

Quito pensou três vezes antes de entrar na livraria. Sabia que, quando ultrapassasse a porta de vidro seria tomado por sentimentos confusos e autodestrutivos. As estantes e seus livros ameaçadores jogariam na cara dele toda sua futilidade. As linhas já escritas pelo homem desde que o mundo é mundo serviriam-lhe como decreto: tudo que merecia já foi escrito. Até o que não merecia também, e Quito não queria fazer parte do grupo dos escritores banais que escrevem o que não merece ser lido. A porta de vidro abria e fechava, com leitores entrando e saindo com pacotes nas mãos. O que tanto eles compravam? Que livros são esses que os fizeram tirar dinheiro do bolso? Quito já escreveu tanto, e só para si mesmo. Nunca teve culhão de publicar seus atabalhoados pensamentos, temperados pelos anos de solidão e esquizofrenia. No entanto, os livros abarrotados na estante lhe diziam, era possível vomitar idéias e deixá-las à mostra. E daí? Quem iria querer se ocupar de suas letrinhas? Quito estava parado, a porta abrindo e fechando, o segurança olhando de cara feia. Ele não iria conseguir. Deu um passo para frente. Deu dois. E a livraria o sugou para dentro. Estava feito, Quito parou perante as estantes, sentiu-se sufocado, humilhado, diminuído. Pensou no colo de sua mãe. Era tão mais fácil na infância, quando os livros eram seus companheiros, e não objetos para uma autoanálise. Resolveu buscar forças onde não tinha, pegou uma dezenas deles e foi para a fila do caixa. “Estes livros não vão mais judiar de mim”. Lembrou-se do velho ditado, se não pode vencê-los, junte-se a eles. Saiu da livraria carregado de volumes, de mãos dadas com Virginia Woolf, Mark Twain, Caio Fernando Abreu, Saramago e outros antigos sufocadores. Eram seus amigos, mais uma vez.

quarta-feira, fevereiro 04, 2009

Mundo estranho

Já pararam pra pensar como é estranho essa coisa de ingerir alimentos? Quase tão estranho como expeli-los depois de algumas horas. Comer, assim como ir ao banheiro, é algo íntimo demais. Deveria estar restrito a cabines fechadas, isoladas do resto do mundo, como são os banheiros. Apesar de não ter problemas para comer em público, às vezes me pego pensando em como é estranho ir a restaurantes. Nele você expõe suas vergonhas levando o garfo à boca, mastigando a comida, escancarando para todos os dentes de alface, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Pior ainda quando algum desconhecido se senta à mesma mesa que você. Mastiga, mastiga, mastiga, engole. Constrangedor. E quando você cisma de reparar no prato dos outros, a coisa complica. Ainda mais se forem paulistas, que adoram colocar um salgadinho no meio da comida. Arroz, feijão, salada, bife e... risole. Ah, risole é demais. Eles gostam de coxinha também. Estranho.

Se vocês já estão me achando freak por pensar assim, tenho mais a dizer: também acho estranho dormir em público. Em quase dois anos dormindo em leitos na Dutra, percebi que dormir também é algo íntimo demais para ser feito de forma coletiva. Nos ônibus, então, é angustiante. Todos se sentam em suas poltronas, tiram os sapatos, colocam os pés pra cima - eca! - e dali a cinco minutos estão roncando. Ron-can-do! Constrangedor. No dia seguinte, ao chegar ao destino, o ônibus parece uma saleta do inferno. Gente acordando de cara amassada, com bafo de bode, baba no canto de boca e jeito lesado de quem não sabe onde está. O horror, o horror...

quinta-feira, janeiro 15, 2009

O Outro

No início de tudo, Y. tinha uma certa curiosidade em relação ao Outro. Natural, ambos estavam dividindo certas coisas e sentiam vontade de descobrir quem era o invasor. Sabia das inseguranças do Outro e as entendia como um processo que, um dia, chegaria ao fim.

O tempo passou, Y. foi se esquecendo do Outro e ambos pareciam estar seguindo suas vidas. Eventualmente ouvia opiniões de pessoas próximas sobre o Outro: Fulano o achava antipático, pois não conversava com ninguém; Beltrano o chamava de chato porque o Outro bebia pouco e ia sempre embora cedo. Um terceiro revelou ainda que o Outro tinha o “rei na barriga” e nunca nem lhe disse “bom dia”.

Y. nunca pensou que o Outro era tão odiado e ia ouvindo os relatos com um certo prazerzinho. Afinal, todos adoravam Y. e elogiavam sempre o fato de ele ser mais agradável que o Outro.

Mas o tal prazer de ser melhor deixou-o intrigado quando percebeu que o Outro continuava vigiando sua vida. De alguma forma, sentia-se encurralado por ele, como num estranho Big Brother virtual. Y. sabia que era observado, e que o Outro, inconscientemente, queria estar em seu lugar.

Hoje em dia, Y. espera que isso passe rápido. Ou que, quem sabe, ele e o Outro possam se tornar amigos. Porque, como diriam os besouros ingleses...

“Life is very short and there’s no time for fussing and fighting, my friend”.

segunda-feira, janeiro 05, 2009

Suco de bobagens

Seu Ananias desceu as escadas lépido como um coelho. “Nunca me senti tão bem. Meu filho, me traz aqueles pesos que eu tô querendo ficar forte hoje”. Alberto estranhou o vigor do pai, minutos atrás estava prostrado no sofá vendo Discovery Channel. “You and me, baby, we’re nothing but mammals, so let’s do it like they do on the Discovery Channel”. “Pai, o que é isso??”. Seu Ananias estava cantando e rodopiando no meio da sala. Alberto se assustou e foi ter com a mãe na cozinha. Algo estranho estava acontecendo com seu pai. “Filhinho, me ajuda aqui. Estas panelas estão todas tortas, não servem mais”. Dona Rosinda estava agachada em frente ao armário da cozinha se livrando de todas as panelas de que cuidou carinhosamente por toda vida. “Mãe, como a senhora vai cozinhar se jogar todas as suas panelas no lixo?”. Dona Rosinda, sem parar o que estava fazendo, simplesmente disse: “E quem precisa comer aqui, meu filho? Cada um pode caçar sua própria comida. O homem tem garras e dentes pra quê, me diz? Além disso, eu acabei de concluir que todos podemos ser vegetarianos. Comer só frutas, verduras e legumes crus. Comer carne é crime, você já pensou?”. Alberto não conseguiu dizer uma palavra. Até porque sua mãe continuou a verborragia, “É crime, meu filho. São animais assa-ssi-na-dos. Morte matada. E eu não vou mais compactuar com isso. Vá. Vá chamar seu pai que ele vai se livrar dessas panelas para mim”. Alberto, achando que o mundo tinha enlouquecido, voltou para a sala e lá estava seu Ananias fazendo uma dança estranha de frente para a TV. “Albertinho, meu filho, descobri que minha dança sensual enlouquece as mulheres. Tá vendo ela ali? Não para de rir. Tá no papo”. Alberto foi conferir quem era a mulher na televisão que estaria louquinha pelo seu pai. Era a Xuxa, em uma reprise de um programa bizarro qualquer dos anos 80. Ela tomava um sorvete e olhava rindo para a câmera. “Veja, filho, veja como ela me quer”. E seu Ananias rebolava de frente para a tela, deixando o rapaz vermelho de vergonha. Alberto subiu as escadas, de dois em dois degraus. Precisava de alguém para compartilhar aquele inferno todo. O mundo enlouqueceu e ele era o único normal? Entrou no quarto de Alípio, o irmão mais novo. “Cara, tem uma coisa surreal rolando lá embaixo e você precisa...”. Não terminou a frase. Alípio estava pelado em frente a janela, balançando seus pertences para quem quisesse ver. “Caralho, sai daí, pelo amor de Deus. Até você?”. Alberto olhou para a rua e uma pequena multidão se aglomerava em frente à sua casa. “Tira! Tira! Tira!”, gritavam os passantes, em polvorosa. Alberto puxou o irmão e o enrolou em uma toalha. “Alípio, olha pra mim. O que está acontecendo?”. O garoto começou a rir. Riu sem parar, por minutos, deixando Alberto desesperado e irritado. Agarrou o irmão pelos braços e o sacudiu: “Puta que pariu, o que é isso?”. Ainda rindo convulsivamente, Alípio respondeu: “É o suco, cara. Você não tomou o suco?”. “Que suco??”. “O suco de laranja que eu fiz. Você não tomou, né? Hahahaha! Não mesmo, dá pra ver! Você tá puto, né, brother?”. E seguiu rindo até quase não se agüentar. Alberto entendeu, então, a razão para aquele surto coletivo em sua família. O irresponsável do seu irmão havia colocado ácido no suco de laranja. Seus pais tomaram e enlouqueceram. Alípio, claro, pirou. E Alberto agora era o único normal dentro de sua própria casa. Logo ele, o filho-problema, o doidão da família. Agora estavam todos provando do próprio veneno, e até mesmo gostando. Hipócritas. “Valeu, irmão. Agora quero ver todo mundo chafurdando no doce”, disse Alberto. Desceu as escadas, passou pelo pai, que naquele momento estava copulando com uma almofada, tal qual um cão, passou pela cozinha, onde sua mãe, deitada no chão, gritava de alegria que estava num mar de panelas, e foi para a rua. Voltou somente no dia seguinte, em silêncio, quando tomou café-da-manhã com a mãe e o pai, envergonhados. Alípio sorriu, maroto, e piscou para Alberto em cumplicidade.

domingo, dezembro 07, 2008

Hoje eu atirei numa pessoa

Hoje eu atirei numa pessoa

Estava úmido, eu lembro, estava frio

Ele era asqueroso e ameaçador

Não lembro de seu rosto nem da voz

Somente do impacto das balas saindo do meu revólver

Foram quatro, talvez cinco

E dos buracos de sangue escorreram filetes

Acho que o matei

Mas sigo sem saber por que atirei

Ele ameaçava alguém que eu gostava

Não lembro de seu rosto nem da voz

Somente que eu amava e por esse amor matava

De súbito, acordei.

terça-feira, dezembro 02, 2008

Preferimos Toddy

A vida tem seus momentos de comercial de margarina, principalmente se o dia está ensolarado e cachorrinhos saltitam nas calçadas. É uma atmosfera especial que não se explica. Simplesmente as pessoas sorriem, as crianças brincam, todos se cumprimentam e parecem emanar uma energia positiva. Aquela música serena, papais e mamães passando manteiga/margarina na torrada. “Ohs” e “Ahs”. Sucrilhos na tigela e lindos mamõezinhos papaya com granola.

Mas dias de comercial de margarina são raros. O mais comum é o maldito cinza sobre as cabeças estressadas, os esbarrões e xingamentos nada amigáveis. Pessoas que gostam de Nescau brigam com os que preferem Toddy. Ninguém diz “bom dia” no elevador. Até os cachorros parecem rosnar, ou então sofrem com o desapego humano pelos seres pulsantes.

Pelo menos hoje o dia amanheceu amarelinho, queimando mansinho, cedinho, cedinho. Deu para colocar a sandália, o vestido e sorrir para o vizinho que abriu a porta ao mesmo tempo. Deu para assobiar até o metrô, feliz, pensando que o amor também adora Toddy. Que bom que preferimos Toddy. Mas em dias de comercial de margarina, também não seria grande problema se alguém pedisse Nescau.

segunda-feira, novembro 17, 2008

Big T. strikes again

Esfomeado de marca maior, T. cresceu acreditando que conseguiria aplacar o vazio de sua alma com comida. Acordava e dormia pensando em comer. Sentia dor e comia. Gozava e comia. Qualquer sentimento, bom ou ruim, que perpassasse seu ser era imediatamente seguido de comida.

Como acontece com todos os seres humanos, a carência da alma foi crescendo em T., com o passar do tempo. Resolveu aventurar-se pelo mundo em busca de novos sabores que o preenchessem. Passou por países diversos, continentes e ilhas perdidas no nada. Realizava o ritual de comer 24 horas sem parar tudo o que o lugar tinha para oferecer. Mas toda a comilança era tão inútil como a maioria das sessões de análise por que passou. T. começou a descer fundo em sua jornada ao inferno.

Doente, carente, anti-social, T. cresceu em angústia e volume. Nos lugares por onde passava, era chamado de Big T. Todos zombavam de sua figura decrépita. Um sentimento de ódio ao mundo fez nascer nele o desejo por sangue. Mais precisamente, carne. Em uma discussão com um inglês mau-caráter, perdeu o controle e devorou-o por completo. Foi a glória de Big T., que finalmente sentiu preenchido parte do seu vazio impreenchível.

Voltou a rodar mundo, com o atropofagicanibalismo pulsando em seus dentes enormes e tortos. Imbuído do desejo de comer e ao mesmo tempo salvar o mundo da peste humana, passou a traçar todos os que julgava ignorantes. Ricos e egoístas? T. devorava. Assassinos de crianças? T. estraçalhava. Mentirosos, larápios, mendigos? Big T. não perdoava. A escória da humanidade estava sendo varrida do mapa pelo apetite voraz de um louco.

Quem ousava reclamar? Big T. era um freak, todos o temiam, mas estava fazendo um grande bem à raça. Era só não deixá-lo sair do controle. Um dia, porém, T. acordou de ovo virado. Abriu sua enorme boca em direção ao mundo e...

domingo, novembro 02, 2008

No future, no future

Presa na torre de silêncio ensurdecedor, tal qual uma Rapunzel descabelada, ela guarda dentro de si o ódio e a angústia. As paredes de onde vive são de papel, a arte é ridicularizada, os livros são de auto-ajuda e o humor, sarcástico. Insuportáveis conversas a forçam sorrir amarelo, bons dias, boas tardes e boas noites falsamente amáveis escondem o desejo pelo grito. Libertem-se! Movam-se! Desburocratizem-se! Na torre de silêncio a vida é chata e inútil, o tempo é fardo, a regra é lei, o marginal, proibido. Rapunzel tenta, por vezes, jogar as tranças pela janela, mas os cabelos quebradiços não sustentam nem o peso de si mesmos. Olhar para o horizonte? Jamais. A paisagem futurista-retrô-sufocante faz as paredes de papel não parecerem tão ruins assim.

sexta-feira, outubro 17, 2008

With english subtitles

When you don't understand a language, what do you do?
Open your ears near the people?
Try to pretend that you're like them?

When you feel strange in a place that's not yours
Do you play Pollyana, making the happy game?
Do you stop complaining and keep your mouth shut?
Do you speak different so people can not understand what you're saying?

When you feel some kind of insanity growing up to your head,
You admit: I'm crazy? Or simply keep your soul beyond everything?

And when everything is so stupid that you just can't manage?