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sexta-feira, novembro 26, 2010

Estilhaços

Da janela de sua casa na comunidade, Deusilene via a movimentação dos policiais, os homens de preto subindo pelas ruas, os tanques passando por cima de tudo. Já havia visto cenas de confronto entre “os homens” e os bandidos, mas daquela vez parecia muito mais sério. Deusilene não sentia medo, porém. Seu pensamento estava longe, pousado em Joilson e nos sonhos que tinham pensado juntos. Aquela casa era para ser dos dois, mas só ela morava ali, com todos os móveis comprados por crediário e a TV de plasma que ganhou da tia Graça, aquela que se deu bem e foi viver na Barra. Casa com vista boa, na rua principal, padaria, farmácia, salão de beleza e até lan house. Deusilene gostava de morar ali, apesar dos tiros que pipocavam às vezes.

Mas Joilson, aquele safado, a abandonara depois de se engraçar com uma fulana no orkut. Deusilene descobriu as conversas salientes, e como não é mulher de perdoar traição, mandou o noivo para longe. No entanto, sofria dia e noite com saudade do cheiro de Cashmere Bouquet que ele usava, dos braços fortes que a envolviam, dos momentos românticos a sós em Iguabinha. Que lástima.

Os tiros continuavam pipocando e Deusilene nem pensava em se esconder ou abaixar. Mantinha-se na janela, os olhos fixos no poste envolvido por um emaranhado de fios. “Assim está meu coração”, ela pensou, antes de avistar dona Cremilda quase colocando os bofes para fora. “Sai da janela, Deusilene, vai pra debaixo da mesa”, gritou a senhora, que seguiu subindo a rua em direção ao seu barraco.

Deusilene mal ouviu as palavras da vizinha. Na verdade, um pensamento terrível passou por sua cabeça numa fração de segundo: “E se eu morresse aqui?”. Nada mais fazia sentido para ela, não iria mais mesmo se casar com Joilson, não teriam três filhos com a letra G – Gleyton, Glenda e Gleyce -, não viajariam para a Disney com as crianças – um sonho antigo – e muito menos juntariam dinheiro para morar no Méier. Talvez até seria bom se ela morresse, Joilson ficaria arrasado, e se arrependeria para o resto da vida de tê-la traído com a periguete do orkut. Choraria sem parar no enterro dela, pensaria que nenhuma outra mulher chegaria aos pés dela, cheiraria suas roupas até que não houvesse mais vestígio de Deusilene nelas. “Ele iria ficar um caco”, sorriu, ainda na janela.

Os tiros continuavam. Resolveu que esta era a solução, iria se jogar na frente do caveirão e gritar: “Pode atirar aqui, seu polícia”. Seria o fim de seu tormento e o início do tormento de Joilson, ele iria ficar um caco, pensou mais uma vez. Estava decidida, sairia de cena naquele momento, nada de filhos, de Méier, de Disney, tudo é bobagem, só o que vale é o amor e ela não tinha mais amor algum dentro dela. Um tiro veio em sua direção. Deusilene gritou. Vidros estilhaçados, o sangue escorria pela roupa e ela pensou: “Então é isso. Vou morrer”. Mas Deusilene não queria morrer, ora bolas, ao diabo com Joilson, ela era muito nova para perder a vida ali, e o sem-vergonha que a traiu no orkut continuar vivendo suas saliências. “Socorro!”, ela gritou, sentindo a vista turvar-se, até tudo ficar preto.

Despertou horas depois, em uma cama de hospital. Viu Joilson consternado ao seu lado. “Sua doida, que história é essa de ficar na janela na hora do tiroteio? Quando me ligaram achei que você tinha morrido”. Deusilene se viu invadida novamente pelo amor, olhou aquele homem e nunca o desejou tanto. “Eles conseguiram remover a bala?”, ela perguntou. “Que bala, Deusi? O tiro pegou na sua janela, você só se cortou com o vidro. Ainda bem que tem medo de sangue e desmaiou, porque se continuasse na janela era capaz de levar um pipoco mesmo”. Deusilene era pura felicidade. Não importava mais a traição, a periguete internética, as mentiras. “Te perdoo, Joilson”, ela disse. “Casa comigo, Deusilene”. Ela não titubeou desta vez: “Caso. Mas a lua-de-mel vai ser na Disney”.

No ano seguinte, embarcaram – ela já grávida de Gleyton – para os Estados Unidos.

quarta-feira, junho 17, 2009

Dois goles

Sentou-se na mesa de bar sozinha.

“Dois chopes”.

“Sim, senhora. Os dois agora?”, estranhou o garçom.

“Sim”.

Minutos depois ele colocava dois cremosos lourinhos em sua mesa.

“Brinda comigo?”, pediu ela.

“Dona, estou trabalhando. Não posso beber”.

“Só um brinde. Não precisa beber. É que dá azar beber sem brindar”.

O garçom olhou para os lados. O chefe, Seu Gumercindo, não estava por perto.

“Tim-Tim”. Ambos bateram as tulipas.

“Toma um golinho”.

“Senhora, eu preciso atender outras mesas...”

“O bar está praticamente vazio. Tem mais garçom que cliente”.

“Mesmo assim. Pega mal. Não posso beber em serviço”.

“Me sinto tão só...”, ela suplicou. Olhou o crachá do homem. “Bebe um golinho, Ulisses. Por mim, vai”.

O garçom respirou fundo. Sabia que não podia. Mas a moça era bonita...

“Viu? Um golinho só. Ninguém sabe, ninguém viu”, disse ela, vendo Ulisses limpar o bigode de espuma em cima do lábio.

Seu Gumercindo apareceu no balcão. Ulisses se aprumou.

“Ok, senhora. Qualquer coisa, pode me chamar. Vou continuar meu serviço”.

Ela seguiu bebendo sozinha. Viu Ulisses entrar e sair da cozinha. Ele não tinha o que fazer.

“Ei! Por favor!”, chamou ela. “Uma porção de batata-frita”, pediu, quando Ulisses se aproximou.

Minutos depois, chegou a porção. Quentinha, crocante.

“Prova, Ulisses. E toma outro gole”.

“Dona... A senhora vai me complicar”.

Ulisses colocou três batatas na boca de uma só vez. Um gole rápido de chope ajudou a maçaroca a descer.

“Não vai perguntar meu nome? Eu digo ‘Ulisses’ e você responde ‘Dona’?”

“Qual a sua graça?”. Ele a olhava com interesse.

“Odineide. Mas pode me chamar de Dina”.

“Dina eu gosto. Combina com... piscina”. Ulisses era mesmo sem jeito.

“E também com morfina, cartolina, anilina... Senta um pouco comigo.”

Dina sabia que Ulisses não podia. Mas ele a surpreendeu com um convite.

“Já deu minha hora, vou bater o cartão. Eu não posso beber aqui, mas... A senhora não quer ir lá na outra esquina, Dina?”. Ele riu com a própria rima involuntária.

“Está bem”, disse a moça, bebendo o resto do chope.

Minutos depois ele saiu, perfumado e sem uniforme de garçom.

Vendo-os descer a rua de mãos dadas, Seu Gumercindo sorriu.

“Há 20 anos eles fazem a mesma coisa. E Ulisses nunca percebeu que eu sei que ele bebe”.

“E o senhor não faz nada por quê?”, perguntou um garçom.

“Porque ele só bebe com a Dina. E são sempre dois goles. Um amor bonito desses... Pra que interromper?”.

domingo, dezembro 07, 2008

Hoje eu atirei numa pessoa

Hoje eu atirei numa pessoa

Estava úmido, eu lembro, estava frio

Ele era asqueroso e ameaçador

Não lembro de seu rosto nem da voz

Somente do impacto das balas saindo do meu revólver

Foram quatro, talvez cinco

E dos buracos de sangue escorreram filetes

Acho que o matei

Mas sigo sem saber por que atirei

Ele ameaçava alguém que eu gostava

Não lembro de seu rosto nem da voz

Somente que eu amava e por esse amor matava

De súbito, acordei.

terça-feira, dezembro 02, 2008

Preferimos Toddy

A vida tem seus momentos de comercial de margarina, principalmente se o dia está ensolarado e cachorrinhos saltitam nas calçadas. É uma atmosfera especial que não se explica. Simplesmente as pessoas sorriem, as crianças brincam, todos se cumprimentam e parecem emanar uma energia positiva. Aquela música serena, papais e mamães passando manteiga/margarina na torrada. “Ohs” e “Ahs”. Sucrilhos na tigela e lindos mamõezinhos papaya com granola.

Mas dias de comercial de margarina são raros. O mais comum é o maldito cinza sobre as cabeças estressadas, os esbarrões e xingamentos nada amigáveis. Pessoas que gostam de Nescau brigam com os que preferem Toddy. Ninguém diz “bom dia” no elevador. Até os cachorros parecem rosnar, ou então sofrem com o desapego humano pelos seres pulsantes.

Pelo menos hoje o dia amanheceu amarelinho, queimando mansinho, cedinho, cedinho. Deu para colocar a sandália, o vestido e sorrir para o vizinho que abriu a porta ao mesmo tempo. Deu para assobiar até o metrô, feliz, pensando que o amor também adora Toddy. Que bom que preferimos Toddy. Mas em dias de comercial de margarina, também não seria grande problema se alguém pedisse Nescau.

quinta-feira, outubro 30, 2008

Caro senhor Carlos

Duas noites já se passaram e já não durmo. Não sei por onde anda, o que faz e com quem. Talvez com quem eu imagine, e é por esse com quem por que não durmo. Só esta noite tomei nove pílulas de dormir, senhor Carlos. Nove. E mantenho-me de olhos abertos, insuportavelmente ardidos, esperando algum sinal de vida seu. Arrependo-me amargamente daquele malfadado feriado que nos conhecemos mais intimamente. Senhor Carlos. Ah, se o senhor soubesse. Você soubesse. Não sei por que voltei a lhe chamar de senhor, só porque está há dois dias desaparecido. Ainda continuam seus resquícios existindo no meu quarto, nossa intimidade ainda cheira em meu travesseiro. E suponho que, neste momento, esteja com aquela mulher, a quem você, ou melhor, o senhor (me sinto tão distante) disse amar para sempre. Ah, senhor Carlos, se soubesse o quanto ela vale. Essazinha tem outros homens. Dez, vinte, em apenas uma semana, senhor Carlos. E eu aqui, devotando-lhe todo o meu amor e fidelidade, ainda que não exista nada oficial entre nós. Mudei minha vida pelo senhor, senhor Carlos. Portanto, peço encarecidamente que me retorne esta carta. Nem que seja para dizer que me esqueceu de uma vez, que esqueceu daquele nosso feriado maravilhoso em Miguel Pereira. Ah, Carlos, eu lembro como se fosse hoje. Você foi tão carinhoso... Senhor Carlos, pelo amor de Deus, não me deixe! O desespero me toma de assalto e me coloca tão inferior que, para mim, você voltou a ser senhor.

 

Rodney

segunda-feira, agosto 18, 2008

...

Pisca aqui.
Deixa os cílios roçarem no meu rosto.
Sua respiração me tira o ar.
Agridoce.
Pescoço no nariz. Boca no ouvido.
Pisca aqui.
Que o amor é feito de cócegas.
E de olhos que abrem e fecham.
Doces.

*Para o meu amor

sexta-feira, agosto 08, 2008

Como substituir amores

Logo no primeiro dia em que chegou, Lolinha conquistou o coração de Aquiles. Loura, seios fartos, boca convidativa, cintura fina. E não tinha somente estes atributos de mulher fútil. Aquiles via nela duas das qualidades que mais admirava nas fêmeas: não tagarelava e sabia ouvir o companheiro. Como todo relacionamento, o início foi de muita paixão. Noites e noites rolando na cama com Lolinha, Aquiles não queria saber de mais nada. Chegou a fingir uma gripe para faltar o trabalho e garantir alguns dias de luxúria com sua loura. Seu programa preferido era tomar banho de banheira com ela: adorava como o corpo de Lolinha ficava escorregadio na água, um convite para momentos inigualáveis a dois.

Também como todo relacionamento que dá certo, da paixão voluptuosa veio o amor incondicional. Aquiles e Lolinha continuavam enroscados dia e noite, mas agora os encontros tinham pitadas de romantismo rasgado. Aquiles levava flores, preparava jantares a dois em seu pequeno apartamento. Cada vez mais apaixonado, ele se declarava de forma emocionada, fitando os olhos sempre abertos dela, desejando ainda mais a boca convidativa da moça.

Como alguns relacionamentos que dão certo e depois se perdem, o amor foi corrompido por uma dose exagerada de ciúme. Tão grande era o sentimento de Aquiles por Lolinha, que ele se transformou num obsessivo de marca maior. Com medo de perder sua mulher para os amigos, Aquiles nunca a apresentou a ninguém. Os dois passavam a maior parte do tempo juntos e sozinhos, sem interferências externas. Os amigos cochichavam a respeito dele às escondidas. Ninguém acreditava que Aquiles tinha mesmo a tal mulher incrível da qual ele tanto se gabava. Afinal, nenhum deles havia visto Lolinha. Chegaram a fazer um bolão no escritório, onde as más línguas apostavam que “ela”, na verdade, era “ele”.

Aquiles não se importava com o que diziam, pensava só em Lolinha, em ficar com ela, em aproveitar seu silêncio em paz. Sim, silêncio, pois, como já foi dito, ela não tagarelava e estava sempre atenta ao que dizia o namorado. Mas a verdade é que Lolinha não falava. Nada, nadinha. Um júbilo para os ouvidos de Aquiles, falador profissional que sempre se irritou com mulheres verborrágicas.

Só que, como a maior parte dos relacionamentos, a rotina chegou, abriu a porta e sentou no sofá. Após tanto tempo isolados do mundo, Aquiles e Lolinha não tinham mais o que conversar. Ou melhor, ele é que não tinha o que dizer, já que ela não emitia sons mesmo. Aquele silêncio todo de repente virou um suplício. Aquiles começou a desejar que ela falasse. A boca outrora convidativa de Lolinha se transformou num buraco negro desinteressante. Num dia de angústia incontrolável, empurrou a mulher contra a quina da parede. E então foi o fim.

Num estouro que se ouviu até nos andares de baixo, Lolinha desapareceu. Esparramados no chão, pedaços de plástico que um dia formaram o corpo da boneca inflável de Aquiles. Desesperado, ele agarrou-se aos restos mortais de sua amada, jurando nunca mais comprar outra.

Uma semana depois, o correio entregou um pacote no apartamento de Aquiles. Era Silvinha, uma morena de arrasar quarteirão.

terça-feira, agosto 05, 2008

Os olhos de Laura

Encostou o nariz naqueles cabelos macios e ruivos e teve a sensação da eternidade. “Quero morar aqui”, pensou, enroscando-se nos compridos fios dela. Os cabelos de Laura eram tão tenros quanto as carnes de suas coxas. Também rosas, também eternas. “Acho que ela nunca vai envelhecer”. Em seus devaneios de amor, pensava em Laura como um ser atemporal, que tem o cheiro do universo. Seus gestos também não faziam parte de tempo algum. Olhava para a ruiva e a via flutuar. Sentia-se imensamente inferior àquela mulher divinal, mas quando tocava naqueles cabelos macios era como tivesse respostas para um não sei o quê. Laura era o sim quando pensava no não, era a tranqüilidade quando se perdia em ânsias. A sabedoria que vinha das madeixas ruivas e perfumadas, da carne macia e sã, dos olhos de metáfora e mistério. Nunca entendia os olhos de Laura à primeira vista. Laura era mulher para uma segunda vista, ininterrupta.

quinta-feira, julho 17, 2008

Remorso

Saiu da festa transtornado, álcool no sangue e remorso no peito. Pegou o carro feito doido que nem viu. Aquela maldita, por que ela fez isso, ele estava tão bem. Mas acabou deixando a festa alucinado, tão doído ele estava que pegou a estrada febril. O cachorro veio distraído, cachorro bobo, de família. Freou com força, mas era tarde. Sentiu o baque, o carro passou em cima do bichinho. Que merda, ele chorou. "Matei o cachorro, sou um criminoso, sou um assassino". Tão transtornado ele estava quando saiu da festa, aquela putinha tanto fez que o levou para o banheiro. Sorte que ele despertou antes do fim, mas foi o suficiente pra sentir culpa, ele tinha tanto amor e não era por aquela vagabunda. Cheio de remorso, pegou o carro, e aí veio o cachorro, por que aquele bicho atravessou a rua justo naquela hora? Bandido, matou um cachorro e traiu a mulher, no mesmo dia, na mesma noite. Estacionou o carro no acostamento, pegou o animal no colo. Estava inerte, não se mexia, ele o havia matado, assim como matou o respeito pela mulher, tudo por uma desfrutável que não valia um centavo. Aquele cachorro era ele mesmo, morto por um carro desgovernado, morto pelo inesperado, pela vagabunda insaciável. Resolveu enterrar com o cão aquela noite inútil, o sentimento doloroso foi junto para a cova, feita sob lágrimas no matagal ao lado de casa.

terça-feira, julho 01, 2008

Na noite do tango

Na noite do tango, estrelas de cartolina caíram sobre suas cabeças. Ela estava um tanto nostálgica, ouvindo as declamações portenhas ao som tão familiar do bandoneón.
Na noite do tango, ele estava distante, pensamento longe ou perto dali, tomando devagar sua cerveja de rótulo doce e sabor amargo.
Na noite do tango, ela chorou com as canções de amores, de passado, de saudades. Olhou para ele, que não estava ali, e sentiu medo do futuro.
Na noite do tango, ele despertou com as lágrimas dela e enxugou-as uma a uma. Beijou, cuidou, acalmou, fazendo-a sentir-se tranqüila outra vez.
Na noite do tango, ele e ela se encontraram novamente, perdendo-se juntos sob as estrelas de cartolina.

domingo, abril 27, 2008

Ilusão de ótica


Tinha obsessão pelo pôr-do-sol, e seu quarto impregnado de fotografias contra-luz provavam isso. Quando estava muito angustiada, ia à praia sozinha vê-lo ir embora. Irritava-se um pouco com as palmas dos hippies e hypes de Ipanema, então ia para a Barra da Tijuca, que não tinha o Dois Irmãos para interromper.
 
Gostava de fixar o olhar no sol até chorar, enquanto sentia o vento de maresia envolvendo-lhe o corpo. Quando já estava cega pela claridade, apertava as pálpebras com força, ao mesmo tempo em que seus dedos dos pés agarravam-se aos grãos de areia, cavando buracos ondulados.
 
Era uma mania solitária e nunca contou a ninguém. Quem convivia com ela sabia que costumava ir à praia nos fins de tarde, mas não imaginavam que fosse pelo sol. Ela, por sua vez, não fazia questão de ninguém por perto. Estava tão envolvida em seu mimetismo solar que solidão era o que menos sentia naquele momento.
 
Num destes fins de tarde, os olhos já ardendo, sentiu uma vontade irresistível de voltar-se para o mar. Dentro d'água, um rapaz acenava em sua direção. Nunca o vira antes, o aceno não devia ser para ela. Mas ali por perto não tinha mais ninguém. Sim, era para ela.
 
Resolveu não dar atenção, podia ser um louco qualquer. Afogando-se, ele não estava, pois acenava com apenas uma das mãos e, mesmo à distância, ela conseguia identificar no estranho um sorriso de canto de boca. Decidiu continuar olhando o sol. Mas a imagem do rapaz, fixa na retina, parecia dançar no meio da bola de fogo. Irritou-se, ele atrapalhara tudo. Voltou-se novamente para o mar e lá estava ele, ainda acenando, ainda com o maldito sorriso no canto da boca.
 
Levantou-se, um pouco cega, e resolveu tirar satisfação. Mas ao aproximar-se da beira d'água, ele deu um mergulho e desapareceu. Ela o xingou em pensamento e voltou para a sua canga. Ficou ainda alguns minutos fitando a água, mas nada dele aparecer. Cansou e decidiu retornar ao sol, que estava sempre ali, não acenava e nem mergulhava. Estava se pondo, como em todas as tardes.
 
Quando as lágrimas já estavam rolando, os pés agarrados à areia, o vento tomando-lhe inteira, angustiou-se. Quis olhar o mar novamente. Tentou controlar-se, não queria ver o estranho, ele incomodava sua paz. Com uma certa dose de masoquismo, porém, virou a cabeça para a direção do infinito, e lá estava. O tonto acenando, incansável. Tapou os olhos com as mãos, mas a imagem dele não sumia, vagava na dimensão escura misturada a objetos geométricos. Por entre os dedos entreabertos, viu que ele estava fazendo sinais.
 
Como que hipnotizada, ela seguiu as próprias pegadas em direção ao mar. O estranho, sorrindo agora de boca inteira, continuava chamando-a. Zonza depois de uma tarde inteira vidrada no sol, deixou-se cair na água gelada. Ele esticou a mão e puxou-a para si. Abraçou-a e mergulhou.
 
Depois deste dia, nunca mais se teve notícias dela. Amigos mais saudosos eventualmente olham para o céu, nos fins de tarde. Alguns arriscam dizer que, depois de alguns minutos, conseguem vê-la acenando, flutuando no meio do sol, ao lado de um rapaz estranho. Mas logo abaixam o olhar: é só ilusão de ótica.

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

Pequena Miss Sunshine


Quando está tudo escuro, ela se lembra da luz dele. E logo seu rosto se ilumina.
Dias e posts ensolarados estão por vir. Os dois têm certeza disso.
"Let the sunshine, let the sunshine in..."

quarta-feira, janeiro 24, 2007

Renato Russo sabe

“E é só você que tem a cura pro meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi.”

Ele nem gosta de Legião. Mas ela gosta, fato assumido em um bate-papo virtual, recentemente. No entanto, ela sabe que ele sabe que, nesse caso, Renato Russo sabe. Não tem como negar, “Índios” têm tudo a ver com o agora.

Ela acorda sentindo falta dele (o “dele” dela, que fique bem claro). Dos filmes que eles não viram juntos, das músicas que não os embalaram, dos projetos que eles ainda nem fizeram. Mas vão fazer. Vão mesmo? É isso o que ela mais quer, o rumo que ela quer seguir, rumo este que estava em ziguezague e de repente se transformou em reta. Para o infinito, de infinitas possibilidades, de sensações ainda não-descobertas, de peças que se encaixam e talvez não queiram se desencaixar tão cedo.

E ela se pergunta, como pode sentir saudade do que não aconteceu, do que está apenas iminente, latente, pronto para explodir, mas ainda não...? Renato Russo sabe, e deve estar mandando explicações para ela, em sonho. Porque hoje mesmo, assim, de supetão, ela pensou numa resposta: é a sensação do atemporal, das lembranças que não são do passado ou do futuro, que pairam na estranha atmosfera do imaginário. Não importa se já aconteceram ou vão acontecer. Elas já existem, estas lembranças. E ninguém poderá tirar isso dela, talvez nem dele.

Um mundo só dos dois, universo paralelo em que tudo é poeira de estrelas. Doce e amargo. Mas ainda assim, concreto como pedra (duvido que o Renato saiba dessa. Mas ele sabe. O “ele” dela, que fique bem claro).

sexta-feira, setembro 15, 2006

M.

Ele é misterioso, estranho. Suas mãos pequenas tremem, está sempre de olhos vidrados. Fala e anda com urgência, parece desesperado pra vomitar tudo aquilo que lhe borbulha as entranhas. Mas ainda assim, louco, ela gosta dele, ela quer estar com ele. Fica imaginando como é sua casa, como é o cheiro das suas roupas. Que música ele ouve? Ela sabe que conviver com ele deve ser complicado. Toda aquela energia espasmódica deve cansar. Mas que importa, ela quer beijá-lo, ela o quer. Só fala com ele olhando nos olhos. Sempre que pode encosta as mãos no braço dele. Outro dia, tascou-lhe um beijo no rosto, de supetão. Ele gosta, ah, mas é claro que sim. Mas ela tem que parar com esse estranho fetiche de desejar estranhos só por que eles são estranhos. Isso faz dela uma estranha também?

E as mãos dele tremem. E ele anda de um lado pro outro. E fala. Urgência, agonia, explosão. Suor. "Mas como ele sua", ela pensa, enquanto o observa. Os olhos dela vidrados nele. Os olhos dele vidrados no nada.