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quarta-feira, junho 17, 2009

Dois goles

Sentou-se na mesa de bar sozinha.

“Dois chopes”.

“Sim, senhora. Os dois agora?”, estranhou o garçom.

“Sim”.

Minutos depois ele colocava dois cremosos lourinhos em sua mesa.

“Brinda comigo?”, pediu ela.

“Dona, estou trabalhando. Não posso beber”.

“Só um brinde. Não precisa beber. É que dá azar beber sem brindar”.

O garçom olhou para os lados. O chefe, Seu Gumercindo, não estava por perto.

“Tim-Tim”. Ambos bateram as tulipas.

“Toma um golinho”.

“Senhora, eu preciso atender outras mesas...”

“O bar está praticamente vazio. Tem mais garçom que cliente”.

“Mesmo assim. Pega mal. Não posso beber em serviço”.

“Me sinto tão só...”, ela suplicou. Olhou o crachá do homem. “Bebe um golinho, Ulisses. Por mim, vai”.

O garçom respirou fundo. Sabia que não podia. Mas a moça era bonita...

“Viu? Um golinho só. Ninguém sabe, ninguém viu”, disse ela, vendo Ulisses limpar o bigode de espuma em cima do lábio.

Seu Gumercindo apareceu no balcão. Ulisses se aprumou.

“Ok, senhora. Qualquer coisa, pode me chamar. Vou continuar meu serviço”.

Ela seguiu bebendo sozinha. Viu Ulisses entrar e sair da cozinha. Ele não tinha o que fazer.

“Ei! Por favor!”, chamou ela. “Uma porção de batata-frita”, pediu, quando Ulisses se aproximou.

Minutos depois, chegou a porção. Quentinha, crocante.

“Prova, Ulisses. E toma outro gole”.

“Dona... A senhora vai me complicar”.

Ulisses colocou três batatas na boca de uma só vez. Um gole rápido de chope ajudou a maçaroca a descer.

“Não vai perguntar meu nome? Eu digo ‘Ulisses’ e você responde ‘Dona’?”

“Qual a sua graça?”. Ele a olhava com interesse.

“Odineide. Mas pode me chamar de Dina”.

“Dina eu gosto. Combina com... piscina”. Ulisses era mesmo sem jeito.

“E também com morfina, cartolina, anilina... Senta um pouco comigo.”

Dina sabia que Ulisses não podia. Mas ele a surpreendeu com um convite.

“Já deu minha hora, vou bater o cartão. Eu não posso beber aqui, mas... A senhora não quer ir lá na outra esquina, Dina?”. Ele riu com a própria rima involuntária.

“Está bem”, disse a moça, bebendo o resto do chope.

Minutos depois ele saiu, perfumado e sem uniforme de garçom.

Vendo-os descer a rua de mãos dadas, Seu Gumercindo sorriu.

“Há 20 anos eles fazem a mesma coisa. E Ulisses nunca percebeu que eu sei que ele bebe”.

“E o senhor não faz nada por quê?”, perguntou um garçom.

“Porque ele só bebe com a Dina. E são sempre dois goles. Um amor bonito desses... Pra que interromper?”.

quinta-feira, dezembro 18, 2008

A Rainha Muda

Chamava-se Jeanne. Na verdade era Janete, mas poucos sabiam seu verdadeiro nome. Jeanne sempre foi Jeanne, desde os 15 anos, quando viu “Jules et Jim” pela primeira vez e apaixonou-se por Moreau. Foi morar sozinha num sobrado velho da Lapa e, ainda adolescente, caiu na noite. Batia ponto na Les Mistons e era conhecida como a Rainha Muda. Cheirava a ylang-ylang e Amarula. E só amava de olhos fechados ouvindo Miles Davis. 

Toda noite, obedecia a um ritual próprio, que ficou conhecido e respeitado ao longo dos anos. Aparecia com um vestido de noiva preto, cigarrilha na mão e expressão indecifrável. Pedia um copo de Amarula e sentava-se na mesa 5. Permanecia sozinha por quase uma hora, tomando doses e doses. Ninguém sentava na mesa 5 a não ser que Jeanne chamasse com os olhos. 

Os fregueses, nas mesas em volta, aguardavam o olhar de medusa que iria transformá-los em pedra. E uma vez escolhidos, eles eram abduzidos para sempre, voltando noite após noite, querendo mais. 

No quarto, Miles na vitrola, fumaça de cigarro, cliente gemendo e Jeanne em outro mundo. Estava longe, nas ruas chuvosas de Paris, entediada à espera de qualquer coisa para lhe entreter. Como era doce estar entediada em Paris. 

Mas era Lapa, e os clientes não sabiam onde estava Jeanne. Pouco importava. Apesar de distante, ela também estava ali, dialética, tratando de seus homens como se fossem os primeiros, como uma virgem lânguida que não era há tempos e como Moreau nunca havia sido. Eles eram tudo para ela e ao mesmo tempo ninguém. 

O ylang-ylang da pele e o hálito de Amarula lhe davam certo ar misterioso, um noir saltando-lhe dos olhos. Quem era Jeanne? Os fregueses queriam saber. Eles a idolatravam. Ela não era deste mundo, muitos diziam, Jeanne não pode ser como os outros.

sábado, setembro 20, 2008

“As pessoas enlouquecem calmamente…”

Vive entre os loucos
De pedra, do metrô, das avenidas
Gesticulantes, ameaçadores
Loucos de bebida
Loucos de cabeça – ruim ou boa
Eles a querem
Perseguem seus passos
Xingam-na nas plataformas
Apontam o dedo contra ela, que se encolhe
Devem pensar:
“Lá se vai uma louca que pensa ser normal”
Se soubessem que ela sabe
Que no fundo, é como eles
Só ainda não perdeu o último parafuso
Que, aliás, anda frouxo, frouxo
Talvez prestes a cair no ralo
Esvaindo-se na água junto com o fiapo de sanidade que lhe resta

segunda-feira, setembro 08, 2008

Era uma vez no Cine Cafofo

De repente Melissa estava ali, sentada no banco da frente do táxi, com o motorista apertando-lhe as pernas. Começava a sair de um intenso estado de inebriedade, que teve início horas antes, em uma festa mofada de Laranjeiras.

Festa mofada sim, num buraco quente qualquer atrás de um hortifruti, conhecido como Cine Cafofo. A sessão era de “Era uma vez na América”, mas só conseguiu ver a primeira hora do filme. Logo tinha saltado para o bar, estava numa noite especialmente abusada. Facinha, facinha.

Sempre fantasiou que iria fazer sexo por dinheiro, pelo menos uma vez, para experimentar. Mas Melissa não tinha coragem, e nunca cobrava depois das noitadas. Nem que o desempenho do homem tenha sido péssimo e ela merecesse uma recompensa pelos não-orgasmos e pela ausência de carinho. Era a típica puta grátis.

Mas, sentada ali no balcão, Sergio Leone de fundo, Melissa tomou sozinha as primeiras doses de whisky. Entre goles profundos, tentava imitar aquelas atrizes decrépitas do cinema nacional, que bebem álcool com uma desenvoltura de quinta, deliciosamente na lama.

“Tá machucada, gata?”, perguntou um cara. Pergunta errada, meu bem. Sim, ela tinha caído do céu, mas não era idiota, disse Melissa com os olhos, tão claramente que o homem nem insistiu. Meia hora passou e um bonitão sentou ao lado dela. Nem lembra muito bem a cantada que ele adotou. Mas, dane-se, era bonito, e isso que importava.

Quando deu por si, Melissa estava no banheiro com o rapaz, o copo de whisky em uma das mãos, o cigarro na outra e as pernas abertas. Na hora pensou em cobrar, “são 50 pratas”, mas não o fez. Com a cabeça mergulhada em Melissa, o bonitão não parecia assim tão bonito.

O whisky deve ter-lhe subido à cabeça, porque não se lembra de como saiu do banheiro. Estava novamente sentada no bar do Cine Cafofo, Sergio Leone já era uma vez faz tempo e a festa havia definitivamente começado. Percebeu-se conversando com um grupo de pseudões, “ah, o Godard”, “ah, o Kusturica”. Não, queridos, poupem-me, disse Melissa. Ou será que ela só pensou? O whisky não deixou seus neurônios se comunicarem. Ela queria mesmo era pornochanchada.

Quando o mofo havia preenchido totalmente suas narinas, Melissa resolveu que era a hora de terminar a noite. Com alguém, talvez? Saiu do Cafofo, foi para a rua. Acenou para um táxi, 090 era seu prefixo.

De repente Melissa estava ali, sentada no banco da frente do táxi, com o 090 em ponto de bala. Ele tentava entrar em um motel, mas ela despertou do famigerado estado de inebriedade, que teve início horas antes, em uma festa mofada de Laranjeiras. 090 não era o Robert de Niro, nem ela a Jodie Foster em início de carreira.

“Me leva pra casa”, disse ela, que não cobrou as 50 pratas do taxista. Pelo contrário, ainda pagou a corrida, tão ansiosa que estava para desaparecer dali.

terça-feira, julho 15, 2008

14 latão

Terminal Rodoviário Menezes Cortes, centro do Rio. Uma bêbada entra no banheiro e pede a uma sóbria que está ali para segurar a porta, que não tem trinco.

Bêbada: Segura pra mim. Esse banheiro dá muito tarado.

Sem alternativa, a sóbria segura a porta imunda.

Bêbada: Colega, tô bebinha...Também, desde 7 horas da manhã no goró!

São cinco da tarde.

Sóbria: Você tá bebendo há dez horas??

Bêbada: É que eu trabalho na barraca ali na frente.

Sóbria: De bebida?

Bêbada: Não, de doce. Mas tem a barraca do lado, né? Aí eu vendo um pouquinho, bebo um pouquinho... Só hoje foram 14 latão e 3 quente!

Sóbria: Mentira!

Bêbada: Verdade! Te juro pra você.

A bêbada dá a descarga.

Sóbria: Se eu bebo 14 latões, saio carregada. É muita coisa!

Bêbada: Ah, que isso... 14 latão tu num guenta? Nem 14 latinha?

Sóbria: Nem latão nem latinha.

Bêbada abre a porta da cabine.

Bêbada: Tu é fraca, hein, colega!

Sóbria: Tu que é sinistra, colega...

Bêbada: É só beber coca-cola e chupar muita bala.

Sóbria: E engov? Sonrisal?

Bêbada: Isso é balela, minha filha. Tem que botar é açúcar no sangue. Depois chega em casa e dá um trato no marido.

Sóbria: Ele não reclama não?

Bêbada: Reclamar de quê? Tô botando dinheiro em casa. Ai dele se der um ai.

Sóbria: Tá certa... Bem, vou lá!

Bêbada: Valeu, colega! Vai treinando em casa que tu consegue. Depois vem aqui competir comigo.

A bêbada ri, sabendo que aquela sobriazinha fajuta nunca seria páreo para ela.

Sóbria: Ah, pode deixar. Quando eu fizer 14 latões, falo contigo.

Bêbada: Aí vai ser tarde demais. Essa noite eu chego nos 20.

A sóbria acha graça e trata de sair dali. Pega um frescão de 6 reais. A bêbada volta para a barraquinha de doces, onde segue rumo aos 20 latões.