Logo no primeiro dia em que chegou, Lolinha conquistou o coração de Aquiles. Loura, seios fartos, boca convidativa, cintura fina. E não tinha somente estes atributos de mulher fútil. Aquiles via nela duas das qualidades que mais admirava nas fêmeas: não tagarelava e sabia ouvir o companheiro. Como todo relacionamento, o início foi de muita paixão. Noites e noites rolando na cama com Lolinha, Aquiles não queria saber de mais nada. Chegou a fingir uma gripe para faltar o trabalho e garantir alguns dias de luxúria com sua loura. Seu programa preferido era tomar banho de banheira com ela: adorava como o corpo de Lolinha ficava escorregadio na água, um convite para momentos inigualáveis a dois.
Também como todo relacionamento que dá certo, da paixão voluptuosa veio o amor incondicional. Aquiles e Lolinha continuavam enroscados dia e noite, mas agora os encontros tinham pitadas de romantismo rasgado. Aquiles levava flores, preparava jantares a dois em seu pequeno apartamento. Cada vez mais apaixonado, ele se declarava de forma emocionada, fitando os olhos sempre abertos dela, desejando ainda mais a boca convidativa da moça.
Como alguns relacionamentos que dão certo e depois se perdem, o amor foi corrompido por uma dose exagerada de ciúme. Tão grande era o sentimento de Aquiles por Lolinha, que ele se transformou num obsessivo de marca maior. Com medo de perder sua mulher para os amigos, Aquiles nunca a apresentou a ninguém. Os dois passavam a maior parte do tempo juntos e sozinhos, sem interferências externas. Os amigos cochichavam a respeito dele às escondidas. Ninguém acreditava que Aquiles tinha mesmo a tal mulher incrível da qual ele tanto se gabava. Afinal, nenhum deles havia visto Lolinha. Chegaram a fazer um bolão no escritório, onde as más línguas apostavam que “ela”, na verdade, era “ele”.
Aquiles não se importava com o que diziam, pensava só em Lolinha, em ficar com ela, em aproveitar seu silêncio em paz. Sim, silêncio, pois, como já foi dito, ela não tagarelava e estava sempre atenta ao que dizia o namorado. Mas a verdade é que Lolinha não falava. Nada, nadinha. Um júbilo para os ouvidos de Aquiles, falador profissional que sempre se irritou com mulheres verborrágicas.
Só que, como a maior parte dos relacionamentos, a rotina chegou, abriu a porta e sentou no sofá. Após tanto tempo isolados do mundo, Aquiles e Lolinha não tinham mais o que conversar. Ou melhor, ele é que não tinha o que dizer, já que ela não emitia sons mesmo. Aquele silêncio todo de repente virou um suplício. Aquiles começou a desejar que ela falasse. A boca outrora convidativa de Lolinha se transformou num buraco negro desinteressante. Num dia de angústia incontrolável, empurrou a mulher contra a quina da parede. E então foi o fim.
Num estouro que se ouviu até nos andares de baixo, Lolinha desapareceu. Esparramados no chão, pedaços de plástico que um dia formaram o corpo da boneca inflável de Aquiles. Desesperado, ele agarrou-se aos restos mortais de sua amada, jurando nunca mais comprar outra.
Uma semana depois, o correio entregou um pacote no apartamento de Aquiles. Era Silvinha, uma morena de arrasar quarteirão.
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sexta-feira, agosto 08, 2008
terça-feira, agosto 05, 2008
Os olhos de Laura
Encostou o nariz naqueles cabelos macios e ruivos e teve a sensação da eternidade. “Quero morar aqui”, pensou, enroscando-se nos compridos fios dela. Os cabelos de Laura eram tão tenros quanto as carnes de suas coxas. Também rosas, também eternas. “Acho que ela nunca vai envelhecer”. Em seus devaneios de amor, pensava em Laura como um ser atemporal, que tem o cheiro do universo. Seus gestos também não faziam parte de tempo algum. Olhava para a ruiva e a via flutuar. Sentia-se imensamente inferior àquela mulher divinal, mas quando tocava naqueles cabelos macios era como tivesse respostas para um não sei o quê. Laura era o sim quando pensava no não, era a tranqüilidade quando se perdia em ânsias. A sabedoria que vinha das madeixas ruivas e perfumadas, da carne macia e sã, dos olhos de metáfora e mistério. Nunca entendia os olhos de Laura à primeira vista. Laura era mulher para uma segunda vista, ininterrupta.
quinta-feira, julho 17, 2008
Remorso
Saiu da festa transtornado, álcool no sangue e remorso no peito. Pegou o carro feito doido que nem viu. Aquela maldita, por que ela fez isso, ele estava tão bem. Mas acabou deixando a festa alucinado, tão doído ele estava que pegou a estrada febril. O cachorro veio distraído, cachorro bobo, de família. Freou com força, mas era tarde. Sentiu o baque, o carro passou em cima do bichinho. Que merda, ele chorou. "Matei o cachorro, sou um criminoso, sou um assassino". Tão transtornado ele estava quando saiu da festa, aquela putinha tanto fez que o levou para o banheiro. Sorte que ele despertou antes do fim, mas foi o suficiente pra sentir culpa, ele tinha tanto amor e não era por aquela vagabunda. Cheio de remorso, pegou o carro, e aí veio o cachorro, por que aquele bicho atravessou a rua justo naquela hora? Bandido, matou um cachorro e traiu a mulher, no mesmo dia, na mesma noite. Estacionou o carro no acostamento, pegou o animal no colo. Estava inerte, não se mexia, ele o havia matado, assim como matou o respeito pela mulher, tudo por uma desfrutável que não valia um centavo. Aquele cachorro era ele mesmo, morto por um carro desgovernado, morto pelo inesperado, pela vagabunda insaciável. Resolveu enterrar com o cão aquela noite inútil, o sentimento doloroso foi junto para a cova, feita sob lágrimas no matagal ao lado de casa.
terça-feira, fevereiro 26, 2008
We'll always have Paris

Foi quando Clive, um simpático gordinho australiano de dentes infantis, aproximou-se e puxou assunto com ela. Começaram falando de vinho, depois de viagens, culturas estrangeiras, pinturas – ele disse que era pintor amador. Sensível e delicado, Clive também escrevia, desenhava e lia, lia muito. Ele falou de Thomas Mann. Ela falou de Gabriel Garcia Márquez e Rubem Fonseca. Trocaram emails, links de blogs. Sentiam-se velhos amigos. Na volta para o albergue, ele a fotografou vendo as estrelas. Sim, ele também fotografava. Dias depois, Clive seguiu para Londres e ela para Veneza. Trocaram alguns emails falando de suas viagens. Ele enviou as fotos do grupo na Torre Eiffel. O último email que ela recebeu dele era enorme, falava de Ingrid Bergman e sua famosa frase em Casablanca: We’ll always have Paris. Por falta de tempo, ela não o respondeu.
Meses depois, recebeu uma mensagem de Andrew, um dos australianos do grupo: Clive havia morrido de pneumonia. Triste, ela chorou toda uma tarde. Resolveu entrar no blog dele, tentando encontrar fotos da Cidade Luz. Seu coração quase parou quando viu, em um dos posts, uma imagem. Era uma pintura dela, sentada na porta do albergue, olhando as estrelas.
terça-feira, dezembro 18, 2007
Fuga das galinhas

Gertrudes nunca foi muito de se conformar com as coisas. Desde pequena, não queria comer o que lhe mandavam, implicava com as crianças que teimavam em lhe apertar e olhava com desprezo para as colegas acomodadas. Não dava bola para os machos que apareciam ali de vez em quando e fazia questão de pregar, em noites de cantoria coletiva, que o mundo lá fora era bem melhor que os apertados cômodos onde moravam.
O sonho de Gertrudes era entrar no caminhão, que uma vez na semana aportava por ali, e seguir seu rumo. Invejava as colegas escolhidas para irem embora. “Um dia, chega a minha vez”, pensava. Terezinha e Berlota, as únicas que suportavam seu mau humor panfletário, diziam que Gertrudes era louca de querer entrar no caminhão. “Ninguém nunca voltou de lá”, afirmavam. “E quem ia querer voltar para um chiqueiro desses?”, retrucava Gertrudes.
Até que o grande dia chegou. Terezinha e Berlota também foram convocadas, muito a contragosto. Fim de ano sempre chamavam mais gente do que o normal. Gertrudes era só alegria, pulava aqui e ali, despedindo-se de todas. Transformou-se na mais simpática do lugar, pelo menos naquele dia. Chegou a trocar olhares com uns machos que zanzavam por ali, coisa que nunca havia feito antes.
Despedidas feitas, promessas de “Até breve” e “Um dia você vai também”, chegou a hora de subir no caminhão. Desta vez, foram centenas. Uma a uma, todas foram se acomodando, ansiosas e faladeiras. O carro deu a partida e lá foram elas, pela estrada. Passaram-se horas, e nada de chegarem ao misterioso destino. Anoiteceu, amanheceu novamente. Gertrudes estava angustiada, o sacrifício era maior do que pensava. Estavam apertadas, esfomeadas. Algumas puxavam briga com as outras. O calor era insuportável, o barulho, ensurdecedor.
Gertrudes cansou. Esperou a vida toda para sair de casa, e agora estava ali passando necessidades. Olhou para Terezinha e Berlota, e disse: “Vou fugir”. As duas olharam-na espantadas. “Você não teria coragem...”. Mas Gertrudes teve. Com o máximo de força que conseguiu reunir, quebrou parte da grade. Colocou o pescoço para fora e sentiu o ventinho de liberdade batendo no rosto. Com cuidado, foi colocando o corpinho para fora. Saltou para a rua.
Não demorou muito para que fosse pega por um transeunte. “Isso aqui garante o meu Natal esse ano”, disse, olhando para ela. Do caminhão, Terezinha e Berlota viram Gertrudes ser levada pelo estranho. “A gente podia ter ido com ela”, pensaram, mas sem coragem de espichar a cabeça para fora do buraco, com medo de sentir o ventinho perigoso.
O sonho de Gertrudes era entrar no caminhão, que uma vez na semana aportava por ali, e seguir seu rumo. Invejava as colegas escolhidas para irem embora. “Um dia, chega a minha vez”, pensava. Terezinha e Berlota, as únicas que suportavam seu mau humor panfletário, diziam que Gertrudes era louca de querer entrar no caminhão. “Ninguém nunca voltou de lá”, afirmavam. “E quem ia querer voltar para um chiqueiro desses?”, retrucava Gertrudes.
Até que o grande dia chegou. Terezinha e Berlota também foram convocadas, muito a contragosto. Fim de ano sempre chamavam mais gente do que o normal. Gertrudes era só alegria, pulava aqui e ali, despedindo-se de todas. Transformou-se na mais simpática do lugar, pelo menos naquele dia. Chegou a trocar olhares com uns machos que zanzavam por ali, coisa que nunca havia feito antes.
Despedidas feitas, promessas de “Até breve” e “Um dia você vai também”, chegou a hora de subir no caminhão. Desta vez, foram centenas. Uma a uma, todas foram se acomodando, ansiosas e faladeiras. O carro deu a partida e lá foram elas, pela estrada. Passaram-se horas, e nada de chegarem ao misterioso destino. Anoiteceu, amanheceu novamente. Gertrudes estava angustiada, o sacrifício era maior do que pensava. Estavam apertadas, esfomeadas. Algumas puxavam briga com as outras. O calor era insuportável, o barulho, ensurdecedor.
Gertrudes cansou. Esperou a vida toda para sair de casa, e agora estava ali passando necessidades. Olhou para Terezinha e Berlota, e disse: “Vou fugir”. As duas olharam-na espantadas. “Você não teria coragem...”. Mas Gertrudes teve. Com o máximo de força que conseguiu reunir, quebrou parte da grade. Colocou o pescoço para fora e sentiu o ventinho de liberdade batendo no rosto. Com cuidado, foi colocando o corpinho para fora. Saltou para a rua.
Não demorou muito para que fosse pega por um transeunte. “Isso aqui garante o meu Natal esse ano”, disse, olhando para ela. Do caminhão, Terezinha e Berlota viram Gertrudes ser levada pelo estranho. “A gente podia ter ido com ela”, pensaram, mas sem coragem de espichar a cabeça para fora do buraco, com medo de sentir o ventinho perigoso.
sábado, dezembro 01, 2007
J.
J. espreme, espreme, e nada. Que raiva, ele pensa. Eu sinto que tem algo, se dói, é porque tem. Continua apertando, tenta de um lado, do outro. Devagar e rápido. Não sai nada. Toda vez é assim. J. percebe que ali embaixo tem coisa, mas sente sempre nas piores horas. No ônibus, na cama ao deitar, no restaurante e enquanto conversa com alguém. Aquilo lateja, parece que vai explodir, livrando-o de vez da dor maldita. No entanto, se conscientemente J. se presta a espremer, só o que sente é o sangue escorrendo. Mistura de fluidos, vermelho-derrota e transparente-vazio. Talvez espremer não seja o certo, talvez uma lâmina resolva, arranco tudo de uma vez e espirro em cima de todo mundo, para provar que tem coisa aí dentro sim, eu sei que tem. J. pragueja demais. E a lâmina continua intacta na gaveta. No fim das contas, ele prefere colocar uma compressa quente, deixando tudo se esvair na corrente sanguínea.
segunda-feira, novembro 26, 2007
Zefa
“Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar... Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar...”. Dona Zefa canta, é sua música preferida. Toca todo sábado na quadra da Portela. Os braços para cima, os olhos fechados. “É ele quem me carrega como nem fosse levar”. Tum. Tum. O bumbo arrepiando a pele negra e enrugada. Dona Zefa nem pode, mas já tomou algumas várias latas de cerveja. A feijoada também lhe pesa no estômago. “E quanto mais remo mais rezo, pra nunca mais se acabar...”. Ela olha para o palco, a Velha Guarda desliza no mar calmo de Paulinho da Viola. Tum. Tum. O bumbo a faz remar para o passado, ali mesmo naquele chão, tantas vezes ela sambou. Desde que era Zefinha e ninguém a chamava de “dona”. Tum. Tum. Josefa mexe os pés cansados, de samba ela nunca se cansa. “A rede do meu destino parece a de um pescador. Quando retorna vazia, vem carregada de dor”. Quantas dores Dona Zefa já carregou, “vivo num redemoinho”, ela canta. Um rodamoinho. Ela gira, sambando seus pés cansados, a quadra gira, gira também a Velha Guarda. Tum. Tum. Dona Zefa perde as forças e vai desabando. Só não chega ao chão porque a multidão não deixa. Pescadores como ela tomam-na nos braços. Tum. Tum. Carregada para longe dali, ela ainda ouve os últimos versos, antes de o mar levá-la de vez. “Deus bem sabe o que ele faz. A onda que me carrega, ela mesma é quem me traz...”.
quinta-feira, setembro 13, 2007
Os livros de Ivo
Deitado na cama de lençóis brancos em frente à janela, Ivo tentava, pela milésima vez nos últimos meses, mexer as pernas. Magras como dois cambitos, elas estavam inertes desde o acidente que, além da capacidade de andar, tirou-lhe grande parte do fôlego de viver. Enquanto olhava irritado o movimento da rua, reparou num brilho estranho que apareceu de repente na janela do vizinho da frente. Franziu a testa e apertou os olhos. Tinha mesmo um reflexo, que ora parecia quieto, ora parecia estar piscando. Piscando para Ivo.
“A morte veio me buscar”, pensou, para logo depois se autocriticar. “Tolices. Quando eu tiver de morrer, morro e pronto. Sem luz piscando, muito menos anjos em coro”. Mas nem toda racionalidade que sempre lhe foi característica conseguia impedir que tal pensamento crescesse. Aquela luz piscava para ele, sim, avisando-lhe do fim inevitável. Com a respiração ofegante, pensou em todos pecados que cometeu, e de repente o inferno lhe pareceu mais real do que o mundo do lado de fora da janela.
Fixado no misterioso reflexo por minutos seguidos, assustou-se ao olhar para dentro do quarto e ver seus livros pipocando de pontos pretos. Já alterado pela idéia das labaredas infernais, Ivo concluiu que precisava se desculpar por tudo o que fez em vida. E como falar já lhe era difícil, pois a garganta apertava com o prenúncio da morte, decidiu distribuir seus bens mais preciosos, os livros. As páginas impressas diriam muito mais do que ele conseguiria balbuciando palavras.
Em menos de uma hora, livrou-se de alguns livros e culpas. Para o seu pai, deu “A metamorfose”, de Kafka, esperando que o velho entendesse que seu filho se transformara num inseto, mas que ainda tinha sentimentos. Para a mãe, ofereceu “O amor nos tempos do cólera”, de Gabo, tentando revelar-lhe que um grande amor pode ultrapassar uma vida inteira e se manter forte. À irmã, deu-lhe Lygia Fagundes Telles em “Verão no aquário”. “É para você não competir mais com mamãe”, pensou Ivo, ao entregar o volume à jovem.
O fato é que ao longo do dia, outros livros foram sendo dados. Ivo se sentia mais fraco, e a luz refletida na casa do vizinho ainda piscava, um tanto pálida, porém. A estante nua de livros deixava-se tocar apenas pela poeira do tempo, formando o desenho dos volumes que durante anos ocuparam aquele espaço.
E assim, exatamente quando o sol se pôs, Ivo entregou o último livro para o último parente que estava no quarto. Deu o derradeiro suspiro quase ao mesmo tempo em que os raios do sol deixavam de tocar o espelho enorme que o vizinho havia colocado em sua sala, pela manhã.
“A morte veio me buscar”, pensou, para logo depois se autocriticar. “Tolices. Quando eu tiver de morrer, morro e pronto. Sem luz piscando, muito menos anjos em coro”. Mas nem toda racionalidade que sempre lhe foi característica conseguia impedir que tal pensamento crescesse. Aquela luz piscava para ele, sim, avisando-lhe do fim inevitável. Com a respiração ofegante, pensou em todos pecados que cometeu, e de repente o inferno lhe pareceu mais real do que o mundo do lado de fora da janela.
Fixado no misterioso reflexo por minutos seguidos, assustou-se ao olhar para dentro do quarto e ver seus livros pipocando de pontos pretos. Já alterado pela idéia das labaredas infernais, Ivo concluiu que precisava se desculpar por tudo o que fez em vida. E como falar já lhe era difícil, pois a garganta apertava com o prenúncio da morte, decidiu distribuir seus bens mais preciosos, os livros. As páginas impressas diriam muito mais do que ele conseguiria balbuciando palavras.
Em menos de uma hora, livrou-se de alguns livros e culpas. Para o seu pai, deu “A metamorfose”, de Kafka, esperando que o velho entendesse que seu filho se transformara num inseto, mas que ainda tinha sentimentos. Para a mãe, ofereceu “O amor nos tempos do cólera”, de Gabo, tentando revelar-lhe que um grande amor pode ultrapassar uma vida inteira e se manter forte. À irmã, deu-lhe Lygia Fagundes Telles em “Verão no aquário”. “É para você não competir mais com mamãe”, pensou Ivo, ao entregar o volume à jovem.
O fato é que ao longo do dia, outros livros foram sendo dados. Ivo se sentia mais fraco, e a luz refletida na casa do vizinho ainda piscava, um tanto pálida, porém. A estante nua de livros deixava-se tocar apenas pela poeira do tempo, formando o desenho dos volumes que durante anos ocuparam aquele espaço.
E assim, exatamente quando o sol se pôs, Ivo entregou o último livro para o último parente que estava no quarto. Deu o derradeiro suspiro quase ao mesmo tempo em que os raios do sol deixavam de tocar o espelho enorme que o vizinho havia colocado em sua sala, pela manhã.
sexta-feira, agosto 31, 2007
D.
Pode-se dizer que o maior problema de D. é a culpa. Ela carrega um peso enorme nas costas, por isso a postura curvada. São culpas de todos os tipos, individuais e coletivas, brandas e pesadas, certas e duvidosas. Culpas que ela não sabe nem se deveria sentir, mas sente. É um problema crônico.
Culpa-se por ter nascido na hora errada. Ou por se esconder quando o mundo pede que todos se mostrem. Não se acha uma boa filha, uma boa irmã. Muito menos, boa amiga ou namorada. Estas são as individuais. Ainda tem as coletivas...
D. abre os jornais e não resiste às tragédias do mundo. Culpa-se pelos acidentes que matam milhares todos os dias, pela pobreza e indignidade que se alastram, pelos bebês e crianças de vida curta, pelos animais que sofrem nas mãos de carrascos. Todos eles parecem dizer a ela: “Aproveite a vida enquanto é tempo, D.! Pare de chorar!”. Mas D. chora demais. E quanto mais chora, mais se culpa. E quanto mais se culpa, mais lágrimas rolam, num ciclo vicioso que a faz pôr em dúvida a razão de sua existência.
Às vezes, tem ímpetos de sair da inércia e salvar o mundo, colocar todos sob seus cuidados. Outras, prefere fugir sozinha para o meio do nada, longe dos homens cínicos, aninhando-se na pureza dos animais, que nunca lhe fizeram mal.
Mas D. escolhe a inércia. Escolhe o namorado sádico, que lhe bate todas as noites. A cada tapa desferido por G., D. vibra, pois sente-se punida por tudo o que deveria fazer e não fez.
Culpa-se por ter nascido na hora errada. Ou por se esconder quando o mundo pede que todos se mostrem. Não se acha uma boa filha, uma boa irmã. Muito menos, boa amiga ou namorada. Estas são as individuais. Ainda tem as coletivas...
D. abre os jornais e não resiste às tragédias do mundo. Culpa-se pelos acidentes que matam milhares todos os dias, pela pobreza e indignidade que se alastram, pelos bebês e crianças de vida curta, pelos animais que sofrem nas mãos de carrascos. Todos eles parecem dizer a ela: “Aproveite a vida enquanto é tempo, D.! Pare de chorar!”. Mas D. chora demais. E quanto mais chora, mais se culpa. E quanto mais se culpa, mais lágrimas rolam, num ciclo vicioso que a faz pôr em dúvida a razão de sua existência.
Às vezes, tem ímpetos de sair da inércia e salvar o mundo, colocar todos sob seus cuidados. Outras, prefere fugir sozinha para o meio do nada, longe dos homens cínicos, aninhando-se na pureza dos animais, que nunca lhe fizeram mal.
Mas D. escolhe a inércia. Escolhe o namorado sádico, que lhe bate todas as noites. A cada tapa desferido por G., D. vibra, pois sente-se punida por tudo o que deveria fazer e não fez.
domingo, agosto 12, 2007
G.
Quando estava de mau humor, G. fazia pouco do resto da humanidade. Podia estar dentro de um ônibus, tão apertado e espremido quanto os outros passageiros, mas olhava com desprezo para os que liam. “Esse povo só lê Bíblia ou livro de auto-ajuda”. Se estava sozinho num banco, torcia o nariz se alguém sentasse ao seu lado. “Tanto lugar vazio...”. Pior ainda se puxassem assunto. Geralmente eram velhinhas carentes ou moças simpáticas com cara de manicure. “Não quero ser seu amigo, idiota”, rosnava, em pensamento.
Andar na rua também o irritava. Transeuntes que esbarravam, gente que andava devagar, gente que andava rápido. Mas o pior para G. era quem andasse ao seu lado. Na mesma linha, quase combinando os passos. Um comichão lhe tomava conta do corpo e ele apressava ou atrasava a caminhada, para se distanciar do companheiro desconhecido.
Fila do caixa eletrônico. Outro problema para ele. Sempre tinha um que errava a senha ou outro que levava mil contas para pagar de uma só vez. Horas de espera. “Malditos”.
Assim era G. de mau humor. E olha que isso era comum. Mas o curioso de tudo isso é que ninguém, nunca, percebeu isso. G. era popular, rodeado de amigos. Doce, alegre, simpático. Incrivelmente ... Bem-humorado. Figura complexa, esse G.
Só quem sabia do mau humor de G. era a namorada, D. A coitada apanhava dia sim, dia não. Como se G. descontasse seu desprezo e ojeriza pelo mundo em belos e bem dados tapas na moça. Bem, eles estão juntos há alguns anos. D. deve gostar.
Mas isso já é outra história.
Andar na rua também o irritava. Transeuntes que esbarravam, gente que andava devagar, gente que andava rápido. Mas o pior para G. era quem andasse ao seu lado. Na mesma linha, quase combinando os passos. Um comichão lhe tomava conta do corpo e ele apressava ou atrasava a caminhada, para se distanciar do companheiro desconhecido.
Fila do caixa eletrônico. Outro problema para ele. Sempre tinha um que errava a senha ou outro que levava mil contas para pagar de uma só vez. Horas de espera. “Malditos”.
Assim era G. de mau humor. E olha que isso era comum. Mas o curioso de tudo isso é que ninguém, nunca, percebeu isso. G. era popular, rodeado de amigos. Doce, alegre, simpático. Incrivelmente ... Bem-humorado. Figura complexa, esse G.
Só quem sabia do mau humor de G. era a namorada, D. A coitada apanhava dia sim, dia não. Como se G. descontasse seu desprezo e ojeriza pelo mundo em belos e bem dados tapas na moça. Bem, eles estão juntos há alguns anos. D. deve gostar.
Mas isso já é outra história.
quinta-feira, novembro 30, 2006
Os seios de Carolina
Não havia como negar: ele tinha olhado. Sem pudores, sem vergonha. Carolina estava vermelha de ódio, de vergonha. Pegou seu próprio primo a espiando trocar de roupa no quarto. Na verdade, só trocara de blusa, mas foi o suficiente para que ele os visse. Nem em seus sonhos podia imaginar que fossem tão bonitos. A cor, o formato, a textura... Miguel mal conseguia ouvir a bronca da prima, que o xingava dos mais diversos palavrões. Em sua cabeça, dançavam como dois botões de rosa ao vento, os seios de Carolina.
Saiu do quarto dela como que hipnotizado. Foi para o jardim da casa da tia Cecília e pôs-se a olhar aqueles botões de rosa. Carolina, Carolina... Que perfeita simetria! Quando deu por si, estava tocando com os lábios as pétalas das flores. Dos lábios para o rosto, do rosto para os cabelos, dos cabelos para suas suadas mãos. Obcecado, sim, por um par de seios. Muito mais bonitos do que todos aqueles que já vira antes nas revistas que seu pai lhe dava.
Desde criança tinha um certo fascínio pela prima. Não conseguia ser ele mesmo quando estava perto dela. Sua beleza o deixava tonto. Mas só agora, aos 15 anos, conseguiu entender por que ficava daquele jeito. Carolina era uma deusa, e sobre ele exercia seus poderes divinos. Era um direito dela: quem nascia assim tão linda, podia tirar qualquer um do sério. Assim, sem culpa. Talvez fosse imbuído por esta força que espiou na fresta da porta entreaberta do quarto da menina. E lá teve a visão que mudaria para sempre toda sua vida, seu conceito do belo e do sexo. Os seios de Carol.
Nunca mais enxergaria nada tão esplendoroso. Seus amigos mais próximos zombavam dele e, mesmo adulto, peitos e peitos depois, ainda tinha em mente aquela imagem. E só em pensar na imagem lembrava de todos os detalhes: o cheiro, o sabor, a maciez da pele. Sim, isso mesmo. Ele havia chegado muito mais perto do que aquela simples espiadela no quarto.
Foi numa noite quente de verão, aquelas em que os ventos mornos inspiram mil desejos e fantasias, que Carolina entrou em seu quarto. Uma semana antes, ela o xingara, vermelha, tensa. Mas desta vez foi diferente. Ela o acordou com um beijo doce e perguntou, ao pé do ouvido: “Você o quer?”. Miguel, com a respiração trôpega e descontrolada, apenas fez que “sim” com a cabeça, e ela lhe deu o presente. Abaixou a alça da camisola branca, e deixou à mostra sua obra-prima. “Pode olhar. Eu sei que você gosta”. Miguel se sentou na cama e ficou minutos, deliciosos e intermináveis, olhando aqueles dois seios arrepiadinhos na sua frente. Não ousava tocá-los. Tinha medo que ela fugisse, indignada.
Mas Carol foi além. Com os lábios molhados, pediu: “Beija aqui”. Ele não hesitou um segundo e pôs a boca no seu tão sonhado objeto de desejo. E lá, ele se deleitou, mordeu, sugou, beijou rápido, leve, devagar, forte. E o vento os envolvia. Carol resplandecia. Miguel? Estava em estado de êxtase, era puro amor, puro tesão, pura paixão. Parecia que aquele momento havia durado uma noite inteira. Mas foram apenas alguns minutos. Ela de repente se afastou, levantou a alça da camisola, sorriu como um anjo e voltou para o seu quarto.
Saiu do quarto dela como que hipnotizado. Foi para o jardim da casa da tia Cecília e pôs-se a olhar aqueles botões de rosa. Carolina, Carolina... Que perfeita simetria! Quando deu por si, estava tocando com os lábios as pétalas das flores. Dos lábios para o rosto, do rosto para os cabelos, dos cabelos para suas suadas mãos. Obcecado, sim, por um par de seios. Muito mais bonitos do que todos aqueles que já vira antes nas revistas que seu pai lhe dava.
Desde criança tinha um certo fascínio pela prima. Não conseguia ser ele mesmo quando estava perto dela. Sua beleza o deixava tonto. Mas só agora, aos 15 anos, conseguiu entender por que ficava daquele jeito. Carolina era uma deusa, e sobre ele exercia seus poderes divinos. Era um direito dela: quem nascia assim tão linda, podia tirar qualquer um do sério. Assim, sem culpa. Talvez fosse imbuído por esta força que espiou na fresta da porta entreaberta do quarto da menina. E lá teve a visão que mudaria para sempre toda sua vida, seu conceito do belo e do sexo. Os seios de Carol.
Nunca mais enxergaria nada tão esplendoroso. Seus amigos mais próximos zombavam dele e, mesmo adulto, peitos e peitos depois, ainda tinha em mente aquela imagem. E só em pensar na imagem lembrava de todos os detalhes: o cheiro, o sabor, a maciez da pele. Sim, isso mesmo. Ele havia chegado muito mais perto do que aquela simples espiadela no quarto.
Foi numa noite quente de verão, aquelas em que os ventos mornos inspiram mil desejos e fantasias, que Carolina entrou em seu quarto. Uma semana antes, ela o xingara, vermelha, tensa. Mas desta vez foi diferente. Ela o acordou com um beijo doce e perguntou, ao pé do ouvido: “Você o quer?”. Miguel, com a respiração trôpega e descontrolada, apenas fez que “sim” com a cabeça, e ela lhe deu o presente. Abaixou a alça da camisola branca, e deixou à mostra sua obra-prima. “Pode olhar. Eu sei que você gosta”. Miguel se sentou na cama e ficou minutos, deliciosos e intermináveis, olhando aqueles dois seios arrepiadinhos na sua frente. Não ousava tocá-los. Tinha medo que ela fugisse, indignada.
Mas Carol foi além. Com os lábios molhados, pediu: “Beija aqui”. Ele não hesitou um segundo e pôs a boca no seu tão sonhado objeto de desejo. E lá, ele se deleitou, mordeu, sugou, beijou rápido, leve, devagar, forte. E o vento os envolvia. Carol resplandecia. Miguel? Estava em estado de êxtase, era puro amor, puro tesão, pura paixão. Parecia que aquele momento havia durado uma noite inteira. Mas foram apenas alguns minutos. Ela de repente se afastou, levantou a alça da camisola, sorriu como um anjo e voltou para o seu quarto.
domingo, novembro 19, 2006
Ricardo
Ricardo sempre foi de falar pouco, mas de uns meses pra cá andava quase mudo. Dizia só o estritamente necessário. Só conversava com alguém se puxassem assunto e, mesmo assim, o papo só rendia se o interlocutor o inspirasse. Gustavo, seu melhor amigo, chegou a contar seis palavras pronunciadas por Ricardo em um dia inteiro. "Você está como a Liv Ullman em Persona", disse ao amigo-mudo. Mas para Ricardo, seu silêncio passava longe do da personagem de Bergman. Elizabeth Vogler estava em crise com a sua arte e, por isso, decidiu calar-se, para não mais mentir. "Quero falar, mas as palavras não vêm. Então fico quieto", explicou Ricardo, num dia em que não estava tão mudo assim.
Ele admirava os falantes compulsivos, ou aqueles simpáticos que tornam qualquer conversa agradável. Ricardo tinha complexo de ruim de papo. Alguns homens são ruins de cama, ele era ruim de papo. Conseguia ficar horas pensando no nada, ou regurgitando coisas repetidas, exibindo as mesmas cenas no telão do cérebro, às vezes com diálogos diferentes, ou outros pontos de vista.
"Por que você não entra num grupo de discussão? Pode estimular", sugeriu Gustavo, cansado dos monólogos no pé-sujo da esquina. Ricardo empalideceu ao imaginar-se num lugar onde seria obrigado a falar. Nada pior do que ser forçado a abrir a boca, ou a opinar sobre alguma coisa. Além dos falantes compulsivos, havia outro nicho do qual ele morria de inveja: os homens que tinham opiniões formadas. "São tão incisivos", pensava. É que, no fundo, pra ele, tudo tanto faz, então pra que opinar sobre esse tudo que tanto faz? Mas ele precisava opinar, para se fazer ouvido e respeitado. Só não conseguia.
As épocas de eleição, então, eram as piores, que é quando todo mundo se transformava em comentarista político. "Qual sua opinião sobre fulano?''. "O que você acha do governo de sicrano?". Pavor! Ainda bem que Ricardo nunca foi entrevistado. Senão iriam descobrir o que realmente se passa em seu cérebro: nada. Sua fama de introvertido, que pode até ser charmosa algumas vezes, transformaria-se na de burro. Burro, não. Cabeça-oca. Por isso, ele vai continuar calado. E nunca, mas nunca mesmo, dará alguma entrevista.
*Paulinho da Viola - Timoneiro
Ele admirava os falantes compulsivos, ou aqueles simpáticos que tornam qualquer conversa agradável. Ricardo tinha complexo de ruim de papo. Alguns homens são ruins de cama, ele era ruim de papo. Conseguia ficar horas pensando no nada, ou regurgitando coisas repetidas, exibindo as mesmas cenas no telão do cérebro, às vezes com diálogos diferentes, ou outros pontos de vista.
"Por que você não entra num grupo de discussão? Pode estimular", sugeriu Gustavo, cansado dos monólogos no pé-sujo da esquina. Ricardo empalideceu ao imaginar-se num lugar onde seria obrigado a falar. Nada pior do que ser forçado a abrir a boca, ou a opinar sobre alguma coisa. Além dos falantes compulsivos, havia outro nicho do qual ele morria de inveja: os homens que tinham opiniões formadas. "São tão incisivos", pensava. É que, no fundo, pra ele, tudo tanto faz, então pra que opinar sobre esse tudo que tanto faz? Mas ele precisava opinar, para se fazer ouvido e respeitado. Só não conseguia.
As épocas de eleição, então, eram as piores, que é quando todo mundo se transformava em comentarista político. "Qual sua opinião sobre fulano?''. "O que você acha do governo de sicrano?". Pavor! Ainda bem que Ricardo nunca foi entrevistado. Senão iriam descobrir o que realmente se passa em seu cérebro: nada. Sua fama de introvertido, que pode até ser charmosa algumas vezes, transformaria-se na de burro. Burro, não. Cabeça-oca. Por isso, ele vai continuar calado. E nunca, mas nunca mesmo, dará alguma entrevista.
*Paulinho da Viola - Timoneiro
terça-feira, outubro 17, 2006
Pássaro verde

Laio acordou de manhã com um aperto no peito. Andou pela casa, foi ao quarto dos pais. O silêncio do sono alheio o fez chorar. Foi para a sala, sentou-se e abriu o jornal. Percorreu as editorias, repletas de notícias tristes. Abriu a página de horóscopo. "Não se culpe por tudo", dizia o sei-lá-quem que inventou as previsões. Saltou do sofá e foi para a varanda. Silêncio. Era cedo demais para o mundo acordar ou era ele quem estava surdo? Viu um pássaro verde fazer um razante, o único ser vivo a se mexer àquela hora. Pegou um pedaço de papel e, num sopro de coragem, escreveu:
"Existir é um fardo. Nascemos e morremos sós, mas passamos a vida buscando fugir desta sina. É só olhar em volta e ver que todo homem é solitário. Tento resolver, mas não adianta. Tento te dizer, mãe, que você é solitária por ter passado anos moralmente subjugada. Agora é tarde demais. Tento te avisar, pai, que você anda só por não saber se comunicar com o outro. Seus amigos se foram. Ou talvez nunca tenham existido. Tento avisar aos doentes que o tempo deles já acabou. Aos meninos de rua, que logo eles serão mortos por uma bala na cabeça. Tento dizer às mulheres, 'não tenham filhos'. Tento voltar para casa e esquecer que sozinho eu enlouqueço, então vou deixar a solidão tomar conta de tudo. Tento escutar, mas só o que ouço é o nada. Tento ver, e só o que se mexe é o pássaro verde, que fugiu para ser livre".
Sem assinar o bilhete, nem corrigir os erros, Laio colou o papel na geladeira com um imã de farmácia. Abriu a porta de casa e nunca mais voltou.
*Obsessão do dia: Love Street, The Doors.
sexta-feira, setembro 22, 2006
Lições do Vaticano
Olhou aquela multidão se dirigindo à Praça de São Pedro. "Droga! Hoje é quarta, dia de Papa", pensou. Mas resolveu seguir em frente mesmo assim. Seu último dia em Roma, não teria como não ir ao Vaticano. Ao chegar na praça, irritou-se com a massa fanática aguardando ansiosa a aparição do bom velhinho com cara de mau (sim, Bento XVI assusta). Legiões de jovens segurando bandeirinhas, entoando cânticos em línguas diversas. A irritação inicial se transformou num imenso sentimento de pena. Aquelas pessoas estavam ali não porque eram felizes, pensou. Mas porque precisavam de ajuda. Olhou para o palco, que era enorme, mas que de tão distante parecia pequenino. Viu aleijados em suas cadeiras de roda esperando pelo grande momento. Emocionou-se e pensou que talvez tirasse alguma lição desta manhã. Seu coração andava muito amargo.
Os minutos passavam, a multidão se agitava. Ela percebeu que alguns começaram a pular as grades laterais, e assim chegavam quase na frente do palco, sem precisar passar pelo sufoco. Seu jeitinho brasileiro gritou-lhe que aquela era a solução, e começou a imitar os fiéis. Saltou várias cercas de ferro até chegar à última, onde havia um paredão de guardas. Um deles olhou para ela e começou a puxar assunto. Era um cara bonito, italiano típico, de Nápoles. Biaggi, quando soube que ela era do Brasil, deu um sorrisinho safado. "Aposto que ele está com más intenções", pensou ela.
A conversa dos dois seguiu animada, numa língua estranha que misturava português, italiano e inglês. Descobriram que depois da missa iriam para o mesmo lugar, Termini. Ele, para pegar seu trem para a cidade natal. Ela, para voltar ao albergue, que ficava perto da estação. "Vamos embora juntos", disse Biaggi. Até que a gritaria os interrompeu: era o Papa, ele ia passar. Sozinha entre as grades, praticamente num camarote, ela viu a branca figurinha desfilar no papamóvel. Tirou fotos borradas, que sua mãe iria gostar. Uns adolescentes resolveram se aboletar ao lado dela, e Biaggi os expulsou com toda sua autoridade de guarda do Vaticano. Ela riu: estava vendo o papa de "camarote" privativo. Só faltava cerveja e abadá.
Quando a missa acabou, os fiéis começaram a se dirigir à Catedral. O italiano olhou para ela e ordenou (o que se esperar de um italiano, ainda por cima policial?): "Você vai para a igreja, faz sua visita e depois nos encontramos aqui às 13h, quando acaba meu turno". Sí, segnore, capisco! Ela foi à igreja, tirou mais fotos para a mãe. Pietá. Túmulo de São Pedro. Capelinhas. Não conseguiu rezar.
Às 13 horas, foi ao encontro de Biaggi. Ela estava apertada, queria fazer xixi. Ele a colocou num banheiro reservado do Vaticano. Quando ela saiu, ele a surpreendeu com um beijo roubado, e quase foram flagrados por outros guardas. "Agora é que vou para o inferno", pensou ela. De mãos dadas, ambos se dirigiram para o ponto de ônibus. A idéia dela era beijá-lo durante o percurso até Termini e depois dizer adeus. "Baccino, baccino", pedia ele. Ela achava graça do rapaz, tão novinho, 23 anos e já cheio de poder. Chamou-o de bambino, ele prometeu mostrar-lhe que não era tão bambino como parecia. Passou a viagem de ônibus tentando convencê-la de ir para o hotel dele. "Nem conheço você", ela dizia, tremendo com os beijos que ele lhe dava. Quase chegando em Termini, ele argumentou (na estranha língua que ambos falavam) que era o último dia dela na Itália, que os dois nunca mais iriam se ver e que ela não era mais uma menina para ficar tão cheia de dedos. Isso feriu seu orgulho de mulher independente e bem-resolvida.
Ao descerem no terminal, seguiram de mãos dadas até o hotel. Depois de uma tarde feliz, despediram-se. "Buona vita, brasiliana". "Buona vita, bambino".
Os minutos passavam, a multidão se agitava. Ela percebeu que alguns começaram a pular as grades laterais, e assim chegavam quase na frente do palco, sem precisar passar pelo sufoco. Seu jeitinho brasileiro gritou-lhe que aquela era a solução, e começou a imitar os fiéis. Saltou várias cercas de ferro até chegar à última, onde havia um paredão de guardas. Um deles olhou para ela e começou a puxar assunto. Era um cara bonito, italiano típico, de Nápoles. Biaggi, quando soube que ela era do Brasil, deu um sorrisinho safado. "Aposto que ele está com más intenções", pensou ela.
A conversa dos dois seguiu animada, numa língua estranha que misturava português, italiano e inglês. Descobriram que depois da missa iriam para o mesmo lugar, Termini. Ele, para pegar seu trem para a cidade natal. Ela, para voltar ao albergue, que ficava perto da estação. "Vamos embora juntos", disse Biaggi. Até que a gritaria os interrompeu: era o Papa, ele ia passar. Sozinha entre as grades, praticamente num camarote, ela viu a branca figurinha desfilar no papamóvel. Tirou fotos borradas, que sua mãe iria gostar. Uns adolescentes resolveram se aboletar ao lado dela, e Biaggi os expulsou com toda sua autoridade de guarda do Vaticano. Ela riu: estava vendo o papa de "camarote" privativo. Só faltava cerveja e abadá.
Quando a missa acabou, os fiéis começaram a se dirigir à Catedral. O italiano olhou para ela e ordenou (o que se esperar de um italiano, ainda por cima policial?): "Você vai para a igreja, faz sua visita e depois nos encontramos aqui às 13h, quando acaba meu turno". Sí, segnore, capisco! Ela foi à igreja, tirou mais fotos para a mãe. Pietá. Túmulo de São Pedro. Capelinhas. Não conseguiu rezar.
Às 13 horas, foi ao encontro de Biaggi. Ela estava apertada, queria fazer xixi. Ele a colocou num banheiro reservado do Vaticano. Quando ela saiu, ele a surpreendeu com um beijo roubado, e quase foram flagrados por outros guardas. "Agora é que vou para o inferno", pensou ela. De mãos dadas, ambos se dirigiram para o ponto de ônibus. A idéia dela era beijá-lo durante o percurso até Termini e depois dizer adeus. "Baccino, baccino", pedia ele. Ela achava graça do rapaz, tão novinho, 23 anos e já cheio de poder. Chamou-o de bambino, ele prometeu mostrar-lhe que não era tão bambino como parecia. Passou a viagem de ônibus tentando convencê-la de ir para o hotel dele. "Nem conheço você", ela dizia, tremendo com os beijos que ele lhe dava. Quase chegando em Termini, ele argumentou (na estranha língua que ambos falavam) que era o último dia dela na Itália, que os dois nunca mais iriam se ver e que ela não era mais uma menina para ficar tão cheia de dedos. Isso feriu seu orgulho de mulher independente e bem-resolvida.
Ao descerem no terminal, seguiram de mãos dadas até o hotel. Depois de uma tarde feliz, despediram-se. "Buona vita, brasiliana". "Buona vita, bambino".
quinta-feira, setembro 21, 2006
Theo
Theo se sente velho. Não só por ver seu corpo definhando, pululando de problemas, dores e texturas estranhas.
É sua cabeça que de repente voou décadas à frente.
Não se anima mais com festas. Trancar-se num cubículo fumacento para ouvir música, mexer o corpo, enlouquecer?
Acha que é perda de tempo, diversão aculturada, sem sentido.
Enjoou dos lugares, das pessoas, até das drogas. Enjoou dos beijos vazios e das investidas infrutíferas.
Quer ficar quieto em casa, com seus cobertores, DVDs e sua solidão balzaquiana.
Theo chora quando toma banho.
Se seu filho nem nasceu, ele ainda é o filho, diz a música.
Theo chora no banho. As lágrimas se misturam à água do chuveiro: ele cuida mais dos pais do que os pais dele.
Enjoou da vida. Quer sumir, quer cuidar só de si mesmo.
Quer ter como única responsabilidade o seu próprio corpo, definhando, pululando de problemas, dores e texturas estranhas.
É sua cabeça que de repente voou décadas à frente.
Não se anima mais com festas. Trancar-se num cubículo fumacento para ouvir música, mexer o corpo, enlouquecer?
Acha que é perda de tempo, diversão aculturada, sem sentido.
Enjoou dos lugares, das pessoas, até das drogas. Enjoou dos beijos vazios e das investidas infrutíferas.
Quer ficar quieto em casa, com seus cobertores, DVDs e sua solidão balzaquiana.
Theo chora quando toma banho.
Se seu filho nem nasceu, ele ainda é o filho, diz a música.
Theo chora no banho. As lágrimas se misturam à água do chuveiro: ele cuida mais dos pais do que os pais dele.
Enjoou da vida. Quer sumir, quer cuidar só de si mesmo.
Quer ter como única responsabilidade o seu próprio corpo, definhando, pululando de problemas, dores e texturas estranhas.
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