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quinta-feira, maio 28, 2009

O dia em que o farsante encarou o espelho

Já estava desconfiado há anos. Mas, ao completar seu 40º aniversário, Toby não teve mais como fugir. Definitivamente – e disse isso mirando-se firme no espelho – ele era uma farsa. Que ninguém lá fora me ouça, pensou. 

A constatação deixou Toby frustrado. Por mais que, vez ou outra, uma vozinha do além tentava convencê-lo de sua inutilidade, a auto-estima sempre lhe disse que ele era o máximo. Agora Toby sabia que estava mais para mínimo, e as centenas de livros de autores consagrados em sua estante, lidos pela metade ou intocados, assinavam embaixo que ele realmente era uma farsa. Longe de ser o intelectual, o culto, o sensível, características que os outros lhe creditavam, e que ele piamente acreditava. 

Rememorou seus textos, escritos desde a adolescência até então, e percebeu como eram rasos. Todos nada mais eram que variações do mesmo tema, as palavras se repetiam, o estilo se manteve, cansativo. Como puderam comprar seus livros ao longo desse tempo? 

Lembrou-se do que dizia às mulheres para conseguir dormir com elas. “Além de escritor, também sou pintor”. Fail, fail, fail. Os quadros mal pintados, ou abandonados por fazer no quartinho dos fundos diziam o oposto. Que feio. 

Toby agora estava diante de um dilema moral: revelar ou não ao mundo que era uma farsa? Assumir publicamente que é mais raso que um prato de salada, ou seguir fingindo profundidade, causando inveja em amigos, comendo mulheres incríveis, ganhando dinheiro sem derramar uma gota de suor? 

Toby não tinha coragem de renegar-se. Não aos 40 anos. Não ia manchar sua existência por isso. Afinal, o resto do mundo, pelo menos a maioria, também é de farsantes. Gente que entra para a história com base em mentiras. Ele é que não ia ser bobo de queimar o próprio filme. 

Resolvido o embate consigo mesmo, Toby deu um sorrisinho cínico para o espelho e desceu para o salão, onde acontecia o lançamento de seu mais novo best seller, “A inteligência é para poucos”.

quarta-feira, julho 23, 2008

Procura-se morfina

Ela tem molas que espremem suas entranhas.
Ela tem um animal que corrói o fígado como a ave de Prometeu.
Ela tem agulhas no estômago, alfinetes na vesícula.
Ela tem amarras nas vértebras e hastes cravadas no ouvido.
Ela tem mãos que lhe apertam o coração; sacos plásticos no pulmão.
Tudo nela dói, desde o mindinho do pé ao último neurônio do cérebro.
Mas, como toda mulher, suporta as dores.
Aprendeu a conviver com elas, se bem que anda um tanto farta.
Procurou marceneiros, veterinários, costureiros, marinheiros.
Ninguém conseguiu libertá-la dos objetos de tortura.
Dizem que continua vagando. Buscando, talvez, um farmacêutico que lhe dê injeções de morfina.

sábado, setembro 01, 2007

Vampira

Eu avisei, rapaz.
Você sabia que os olhos iriam arder.
As horas de satisfação não compensariam o final solitário.
Seu pensamento está longe daqui. E de que adiantou?
Sua premissa de aproveitar o presente transforma seu futuro num breu.
Até então você controlava tudo, agora está a mercê.
Não posso fazer nada, ao menos agora, estou de mãos atadas.
Mas acredito piamente que você vai passar por isso sem arranhões.
No máximo, terá um machucado cuja casca eu vou tirar, e com intimidade, chuparei o sangue.

sexta-feira, agosto 31, 2007

D.

Pode-se dizer que o maior problema de D. é a culpa. Ela carrega um peso enorme nas costas, por isso a postura curvada. São culpas de todos os tipos, individuais e coletivas, brandas e pesadas, certas e duvidosas. Culpas que ela não sabe nem se deveria sentir, mas sente. É um problema crônico.

Culpa-se por ter nascido na hora errada. Ou por se esconder quando o mundo pede que todos se mostrem. Não se acha uma boa filha, uma boa irmã. Muito menos, boa amiga ou namorada. Estas são as individuais. Ainda tem as coletivas...

D. abre os jornais e não resiste às tragédias do mundo. Culpa-se pelos acidentes que matam milhares todos os dias, pela pobreza e indignidade que se alastram, pelos bebês e crianças de vida curta, pelos animais que sofrem nas mãos de carrascos. Todos eles parecem dizer a ela: “Aproveite a vida enquanto é tempo, D.! Pare de chorar!”. Mas D. chora demais. E quanto mais chora, mais se culpa. E quanto mais se culpa, mais lágrimas rolam, num ciclo vicioso que a faz pôr em dúvida a razão de sua existência.

Às vezes, tem ímpetos de sair da inércia e salvar o mundo, colocar todos sob seus cuidados. Outras, prefere fugir sozinha para o meio do nada, longe dos homens cínicos, aninhando-se na pureza dos animais, que nunca lhe fizeram mal.

Mas D. escolhe a inércia. Escolhe o namorado sádico, que lhe bate todas as noites. A cada tapa desferido por G., D. vibra, pois sente-se punida por tudo o que deveria fazer e não fez.

domingo, agosto 12, 2007

G.

Quando estava de mau humor, G. fazia pouco do resto da humanidade. Podia estar dentro de um ônibus, tão apertado e espremido quanto os outros passageiros, mas olhava com desprezo para os que liam. “Esse povo só lê Bíblia ou livro de auto-ajuda”. Se estava sozinho num banco, torcia o nariz se alguém sentasse ao seu lado. “Tanto lugar vazio...”. Pior ainda se puxassem assunto. Geralmente eram velhinhas carentes ou moças simpáticas com cara de manicure. “Não quero ser seu amigo, idiota”, rosnava, em pensamento.

Andar na rua também o irritava. Transeuntes que esbarravam, gente que andava devagar, gente que andava rápido. Mas o pior para G. era quem andasse ao seu lado. Na mesma linha, quase combinando os passos. Um comichão lhe tomava conta do corpo e ele apressava ou atrasava a caminhada, para se distanciar do companheiro desconhecido.

Fila do caixa eletrônico. Outro problema para ele. Sempre tinha um que errava a senha ou outro que levava mil contas para pagar de uma só vez. Horas de espera. “Malditos”.

Assim era G. de mau humor. E olha que isso era comum. Mas o curioso de tudo isso é que ninguém, nunca, percebeu isso. G. era popular, rodeado de amigos. Doce, alegre, simpático. Incrivelmente ... Bem-humorado. Figura complexa, esse G.

Só quem sabia do mau humor de G. era a namorada, D. A coitada apanhava dia sim, dia não. Como se G. descontasse seu desprezo e ojeriza pelo mundo em belos e bem dados tapas na moça. Bem, eles estão juntos há alguns anos. D. deve gostar.

Mas isso já é outra história.