Deitado na cama de lençóis brancos em frente à janela, Ivo tentava, pela milésima vez nos últimos meses, mexer as pernas. Magras como dois cambitos, elas estavam inertes desde o acidente que, além da capacidade de andar, tirou-lhe grande parte do fôlego de viver. Enquanto olhava irritado o movimento da rua, reparou num brilho estranho que apareceu de repente na janela do vizinho da frente. Franziu a testa e apertou os olhos. Tinha mesmo um reflexo, que ora parecia quieto, ora parecia estar piscando. Piscando para Ivo.
“A morte veio me buscar”, pensou, para logo depois se autocriticar. “Tolices. Quando eu tiver de morrer, morro e pronto. Sem luz piscando, muito menos anjos em coro”. Mas nem toda racionalidade que sempre lhe foi característica conseguia impedir que tal pensamento crescesse. Aquela luz piscava para ele, sim, avisando-lhe do fim inevitável. Com a respiração ofegante, pensou em todos pecados que cometeu, e de repente o inferno lhe pareceu mais real do que o mundo do lado de fora da janela.
Fixado no misterioso reflexo por minutos seguidos, assustou-se ao olhar para dentro do quarto e ver seus livros pipocando de pontos pretos. Já alterado pela idéia das labaredas infernais, Ivo concluiu que precisava se desculpar por tudo o que fez em vida. E como falar já lhe era difícil, pois a garganta apertava com o prenúncio da morte, decidiu distribuir seus bens mais preciosos, os livros. As páginas impressas diriam muito mais do que ele conseguiria balbuciando palavras.
Em menos de uma hora, livrou-se de alguns livros e culpas. Para o seu pai, deu “A metamorfose”, de Kafka, esperando que o velho entendesse que seu filho se transformara num inseto, mas que ainda tinha sentimentos. Para a mãe, ofereceu “O amor nos tempos do cólera”, de Gabo, tentando revelar-lhe que um grande amor pode ultrapassar uma vida inteira e se manter forte. À irmã, deu-lhe Lygia Fagundes Telles em “Verão no aquário”. “É para você não competir mais com mamãe”, pensou Ivo, ao entregar o volume à jovem.
O fato é que ao longo do dia, outros livros foram sendo dados. Ivo se sentia mais fraco, e a luz refletida na casa do vizinho ainda piscava, um tanto pálida, porém. A estante nua de livros deixava-se tocar apenas pela poeira do tempo, formando o desenho dos volumes que durante anos ocuparam aquele espaço.
E assim, exatamente quando o sol se pôs, Ivo entregou o último livro para o último parente que estava no quarto. Deu o derradeiro suspiro quase ao mesmo tempo em que os raios do sol deixavam de tocar o espelho enorme que o vizinho havia colocado em sua sala, pela manhã.
quinta-feira, setembro 13, 2007
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Um comentário:
Ivo podia deixar um livro pra mim também...
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