domingo, novembro 19, 2006

Ricardo

Ricardo sempre foi de falar pouco, mas de uns meses pra cá andava quase mudo. Dizia só o estritamente necessário. Só conversava com alguém se puxassem assunto e, mesmo assim, o papo só rendia se o interlocutor o inspirasse. Gustavo, seu melhor amigo, chegou a contar seis palavras pronunciadas por Ricardo em um dia inteiro. "Você está como a Liv Ullman em Persona", disse ao amigo-mudo. Mas para Ricardo, seu silêncio passava longe do da personagem de Bergman. Elizabeth Vogler estava em crise com a sua arte e, por isso, decidiu calar-se, para não mais mentir. "Quero falar, mas as palavras não vêm. Então fico quieto", explicou Ricardo, num dia em que não estava tão mudo assim.

Ele admirava os falantes compulsivos, ou aqueles simpáticos que tornam qualquer conversa agradável. Ricardo tinha complexo de ruim de papo. Alguns homens são ruins de cama, ele era ruim de papo. Conseguia ficar horas pensando no nada, ou regurgitando coisas repetidas, exibindo as mesmas cenas no telão do cérebro, às vezes com diálogos diferentes, ou outros pontos de vista.

"Por que você não entra num grupo de discussão? Pode estimular", sugeriu Gustavo, cansado dos monólogos no pé-sujo da esquina. Ricardo empalideceu ao imaginar-se num lugar onde seria obrigado a falar. Nada pior do que ser forçado a abrir a boca, ou a opinar sobre alguma coisa. Além dos falantes compulsivos, havia outro nicho do qual ele morria de inveja: os homens que tinham opiniões formadas. "São tão incisivos", pensava. É que, no fundo, pra ele, tudo tanto faz, então pra que opinar sobre esse tudo que tanto faz? Mas ele precisava opinar, para se fazer ouvido e respeitado. Só não conseguia.

As épocas de eleição, então, eram as piores, que é quando todo mundo se transformava em comentarista político. "Qual sua opinião sobre fulano?''. "O que você acha do governo de sicrano?". Pavor! Ainda bem que Ricardo nunca foi entrevistado. Senão iriam descobrir o que realmente se passa em seu cérebro: nada. Sua fama de introvertido, que pode até ser charmosa algumas vezes, transformaria-se na de burro. Burro, não. Cabeça-oca. Por isso, ele vai continuar calado. E nunca, mas nunca mesmo, dará alguma entrevista.

*Paulinho da Viola - Timoneiro

2 comentários:

Anônimo disse...

Alguém disse que é melhor ficar calado e deixar todo mundo achando que você é burro do que abrir a boca e dar a todos a certeza de que você é burro mesmo.

Thiago Lasco disse...

adorei essa crônica! (foi inspirada em algum amigo seu ? rs...)