Mostrando postagens com marcador futuro. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador futuro. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, novembro 11, 2009

Mamões amassados

Com dificuldade, abriu a porta de casa e colocou a caixa de mamões amassados sobre a pia da cozinha. Olhou aquelas frutas feias e se perguntou por que as havia comprado.

Naquele dia, Lia havia deixado de ir à feira cedo porque deveria lavar a louça. Enquanto secava os pratos, lembrou-se da poeira sob o sofá e do dinheiro que deveria depositar no banco. Tirou o pó, foi ao banco e só na volta conseguiu passar na feira. Tudo o que conseguiu foram os mamões amassados.

O calor que fazia naquele meio-dia de segunda deve tê-la deixado de miolo mole. Lia começou a achar ridículas todas as necessidades básicas do homem, principalmente esta por comida. Viu os últimos fregueses caçando a xepa e imaginou-os animalescos, comendo os mamões amassados, as sementes pretas escorrendo no canto da boca. Tão simplório este ato de comer, para depois eliminar, e depois comer de novo. No futuro, ninguém se importaria com os hábitos daquelas criaturas, com o que faziam ou deixavam de fazer.

Ela também, Lia, fazia parte deste ciclo e seria esquecida. Quem vai saber que ela deixou de ir à feira para lavar a louça, e por isso teve de se contentar com mamões amassados? Achou suas necessidades mundanas muito pequenas para continuá-las repetindo. Só pensava no futuro e na sua ausência dele. Não haveria registro de sua estúpida rotina. Lia seria mais uma foto embolorada, perdida em álbuns de família, com a expressão de uma pessoa do século passado, mórbida como num filme de fantasmas.

sexta-feira, maio 01, 2009

A caligrafia

Aconteceu num inverno qualquer da primeira década de 2000. Veio de repente no meio da penumbra, jogou-me contra a parede e perfurou minha alma com seus olhos distantes. Olhos de passado, de quem já foi e não estava mais ali. Parecia que o conhecia, mas forcei a memória e não encontrei nada parecido com ele. Tirou uma carta amassada do bolso, esfregou-a na minha cara.  Sua expressão era de dor e pavor, ele tinha medo de mim, e ao mesmo tempo uma raiva contida prestes a explodir.

“Quem é você?”, perguntei, mas ele disse que não tinha muito tempo. “Assim que eu sair, você lê”. A carta pressionada contra meu corpo, as lágrimas dele começando a rolar. “Quem é você?”, eu perguntava, tentando encontrar a resposta naqueles olhos familiares, malditos olhos, de onde vem? Ele me abraçou forte, aconchegou-se em meu colo como se sempre o tivesse feito, e esse ato me pareceu corriqueiro como acordar todos os dias e escovar os dentes.

 Num rompante ele se separou de mim, saiu de repente como havia chegado e desapareceu na penumbra. Na mesma hora abri o envelope amassado, era uma carta velha, mas estranhamente datava de 2032. Era de despedida, e dizia “Meus filhos, não me vejo mais neste mundo. Perdoem-me”. A caligrafia suicida era conhecida, as letras, apesar de tremidas, eram familiares. Fiquei completamente sem ar. Afinal, eu conhecia muito bem a pessoa que escreveu a carta... Era eu mesma. 

Alguns anos depois do dia em que ele me perfurou com seus olhos de passado, tenho-o novamente em meus braços. É um bebê, recostado em meu colo, olhando-me com olhos familiares. Entendi que não eram olhos de passado, eram olhos de futuro, de quem seria e ainda não estava lá. Mas, ainda assim, na penumbra, ele me salvou de mim mesma.

quinta-feira, março 12, 2009

Clichês da insatisfação

Não sabe se vai ou se fica
Se fica, quer ir
Se vai, quer ficar
Chora no avião porque está chegando
Chora mais ainda quando está partindo
É a incrível capacidade humana de querer o que não se tem
O prazer masoquista de sentir saudade
nostalgia
ansiedade
E todos esses sentimentos de coisas abstratas
O palpável não serve
O presente é só angústia
O passado é que era bom
O futuro será melhor
Errado, tão errado...
Erradíssimo!
Tsc. Humanos.