terça-feira, dezembro 18, 2007

Fuga das galinhas


Gertrudes nunca foi muito de se conformar com as coisas. Desde pequena, não queria comer o que lhe mandavam, implicava com as crianças que teimavam em lhe apertar e olhava com desprezo para as colegas acomodadas. Não dava bola para os machos que apareciam ali de vez em quando e fazia questão de pregar, em noites de cantoria coletiva, que o mundo lá fora era bem melhor que os apertados cômodos onde moravam.

O sonho de Gertrudes era entrar no caminhão, que uma vez na semana aportava por ali, e seguir seu rumo. Invejava as colegas escolhidas para irem embora. “Um dia, chega a minha vez”, pensava. Terezinha e Berlota, as únicas que suportavam seu mau humor panfletário, diziam que Gertrudes era louca de querer entrar no caminhão. “Ninguém nunca voltou de lá”, afirmavam. “E quem ia querer voltar para um chiqueiro desses?”, retrucava Gertrudes.

Até que o grande dia chegou. Terezinha e Berlota também foram convocadas, muito a contragosto. Fim de ano sempre chamavam mais gente do que o normal. Gertrudes era só alegria, pulava aqui e ali, despedindo-se de todas. Transformou-se na mais simpática do lugar, pelo menos naquele dia. Chegou a trocar olhares com uns machos que zanzavam por ali, coisa que nunca havia feito antes.

Despedidas feitas, promessas de “Até breve” e “Um dia você vai também”, chegou a hora de subir no caminhão. Desta vez, foram centenas. Uma a uma, todas foram se acomodando, ansiosas e faladeiras. O carro deu a partida e lá foram elas, pela estrada. Passaram-se horas, e nada de chegarem ao misterioso destino. Anoiteceu, amanheceu novamente. Gertrudes estava angustiada, o sacrifício era maior do que pensava. Estavam apertadas, esfomeadas. Algumas puxavam briga com as outras. O calor era insuportável, o barulho, ensurdecedor.

Gertrudes cansou. Esperou a vida toda para sair de casa, e agora estava ali passando necessidades. Olhou para Terezinha e Berlota, e disse: “Vou fugir”. As duas olharam-na espantadas. “Você não teria coragem...”. Mas Gertrudes teve. Com o máximo de força que conseguiu reunir, quebrou parte da grade. Colocou o pescoço para fora e sentiu o ventinho de liberdade batendo no rosto. Com cuidado, foi colocando o corpinho para fora. Saltou para a rua.

Não demorou muito para que fosse pega por um transeunte. “Isso aqui garante o meu Natal esse ano”, disse, olhando para ela. Do caminhão, Terezinha e Berlota viram Gertrudes ser levada pelo estranho. “A gente podia ter ido com ela”, pensaram, mas sem coragem de espichar a cabeça para fora do buraco, com medo de sentir o ventinho perigoso.

segunda-feira, dezembro 10, 2007

Bolhas

Quando ela chegou à beira do lago, ele estava se afogando.
Não conseguiu salvá-lo.

Chorou somente uma lágrima.
E depois o esqueceu para sempre.

quarta-feira, dezembro 05, 2007

Vazio

1: Dá pra encher o vazio com música?
2: Nem sempre, algumas ajudam a esvaziar ainda mais.

1: E com filme, dá?
2: Durante duas horas, até dá. Mas e depois?

1: Hum. De repente um telefonema faz melhorar.
2: Depende da voz da pessoa do outro lado da linha.

1: Um e-mail, talvez?
2: De tantos que se recebe por dia, poucos se salvam.

1: Mas umas cervejas conseguem encher o vazio.
2: Conseguem. Mas se você exagerar, faz besteira. E o vazio só piora.

1: O vazio dói.
2: Eu sei, choro todo dia por ele.

1: Até há pouco tempo eu não o sentia.
2: É claro, estava preenchido de ilusão.

1: Não tenho mais idade pra ilusões.
2: Por isso estamos vazios.

1: E o que fazemos, então?
2: Vamos fingir que o vazio não existe.

1: Agora?
2: Sim. Um, dois, três e... Já!

sábado, dezembro 01, 2007

J.

J. espreme, espreme, e nada. Que raiva, ele pensa. Eu sinto que tem algo, se dói, é porque tem. Continua apertando, tenta de um lado, do outro. Devagar e rápido. Não sai nada. Toda vez é assim. J. percebe que ali embaixo tem coisa, mas sente sempre nas piores horas. No ônibus, na cama ao deitar, no restaurante e enquanto conversa com alguém. Aquilo lateja, parece que vai explodir, livrando-o de vez da dor maldita. No entanto, se conscientemente J. se presta a espremer, só o que sente é o sangue escorrendo. Mistura de fluidos, vermelho-derrota e transparente-vazio. Talvez espremer não seja o certo, talvez uma lâmina resolva, arranco tudo de uma vez e espirro em cima de todo mundo, para provar que tem coisa aí dentro sim, eu sei que tem. J. pragueja demais. E a lâmina continua intacta na gaveta. No fim das contas, ele prefere colocar uma compressa quente, deixando tudo se esvair na corrente sanguínea.