Logo quando aprendeu a ser livre, deixou-se prender novamente.
Pela primeira vez pluri, poli, multi, deu um passo atrás e virou mono.
Hora de retornar com os tentáculos.
domingo, março 30, 2008
terça-feira, março 25, 2008
Dona Zefa: final cut
Chegou-me às mãos um bilhete desaforado de dona Zefa da Portela. Reclamou que o post sobre ela neste blog estava poético demais, sonhador demais, e ela não gosta destas frescuras. Pediu que eu relatasse a história de seu desmaio na quadra, tal e qual se deu. Nada de frufrus nem floreios. A pedidos, então, dona Zefa em final cut.
“Assim, no mapa, parece que é perto. Mas Rio das Pedras é bem longe de Madureira. Dona Zefa que o diga. Passa uma calorenta e apertada hora no famigerado 748, até chegar, com as netas Deusilene e Sandra Sílvia, à quadra da Portela. O samba já começou, e a espevitada senhorinha empurra as netas pra dentro. “Vambora, minhas filhas, que hoje eu sambo até me acabar”. Com uma cerveja na mão, ela cumprimenta as colegas, senhorinhas espevitadas como ela, que freqüentam aquela quadra desde novinhas. “Ô, Deusilene, vem aqui falar com a tia Creide!”. A jovem beija dona Cleide e depois trata de sair dali, prefere ficar com a rapaziada. No meio das amigas, Zefa canta, dança, tem quase tanta agilidade quanto as netas. A cerveja - de garrafa, é claro – roda de mão em mão. Mãos enrugadas que levam o líquido amarelo às bocas também enrugadas, sorridentes.
Na hora da feijoada, dona Zefa come seu pratinho de graça, como sempre. Conhece as cozinheiras, cresceu brincando com elas nas ruas de Madureira. Isso bem antes de casar e se despencar para o Rio das Pedras. Feijoada sempre dá sede. “Creide, pega mais uma garrafa pra gente?”. As senhorinhas bebem. E dançam. Sambam. Sapateiam as sandálias e sapatilhas sujas de lama.
Em cima do palco, dona Zefa vê o neto brilhando. Entre os músicos, Joilson dedilha seu cavaquinho e sorri para a avó. Já sabe o que ela quer: Zeca Pagodinho. O grupo manda ver um sucesso do cantor, e a quadra vem abaixo. Dona Zefa sente o calor da multidão, tão forte que a faz perder o ar. Meio tonta, se esforça para respirar, mas tudo fica preto de repente.
Chamadas às pressas por Cleide, Deusilene e Sandra Sílvia levam a avó para o banheiro. Semidesmaiada, Zefa tem as pernas moles. Seu rosto negro está pálido. “Meu Deus, ela vai morrer!”, chora uma, enquanto a outra abana a avó, já sentada numa cadeira. Pequeno e lotado de mulheres, o banheiro enlameado vira um verdadeiro caos. “Bota ela no chuveiro!”, alguém diz. Deusilene e Sandra Sílvia tiram a roupa da pobre velhinha e a colocam sob a água fria.
Chega um médico. “Quem está passando mal aqui?”. As mulheres – muitas estavam ali por pura curiosidade – apontam o box do chuveiro. Mas as netas escandalosas o impedem de ver dona Zefa. “Ela tá pelada, sai daqui!”, diz Sandra Sílvia, batendo a porta na cara do doutor. “Minha senhora, eu preciso examinar sua avó, abre essa porta”. “Pelada, não!”. “Então botem a roupa nela!”.
Alguém tem a feliz idéia de jogar a roupa de dona Zefa por cima da porta. As netas vestem a avó, que já está recobrando os sentidos. O médico finalmente a examina. Recomenda menos agitação, menos cerveja e menos comida gordurosa. Assustada, Zefa faz que sim com a cabeça.
Um mês depois, porém, lá está dona Zefa de novo. Afinal, ela não é mulher de frufrus e floreios. “Desce mais uma pra gente, Creide!”.
“Assim, no mapa, parece que é perto. Mas Rio das Pedras é bem longe de Madureira. Dona Zefa que o diga. Passa uma calorenta e apertada hora no famigerado 748, até chegar, com as netas Deusilene e Sandra Sílvia, à quadra da Portela. O samba já começou, e a espevitada senhorinha empurra as netas pra dentro. “Vambora, minhas filhas, que hoje eu sambo até me acabar”. Com uma cerveja na mão, ela cumprimenta as colegas, senhorinhas espevitadas como ela, que freqüentam aquela quadra desde novinhas. “Ô, Deusilene, vem aqui falar com a tia Creide!”. A jovem beija dona Cleide e depois trata de sair dali, prefere ficar com a rapaziada. No meio das amigas, Zefa canta, dança, tem quase tanta agilidade quanto as netas. A cerveja - de garrafa, é claro – roda de mão em mão. Mãos enrugadas que levam o líquido amarelo às bocas também enrugadas, sorridentes.
Na hora da feijoada, dona Zefa come seu pratinho de graça, como sempre. Conhece as cozinheiras, cresceu brincando com elas nas ruas de Madureira. Isso bem antes de casar e se despencar para o Rio das Pedras. Feijoada sempre dá sede. “Creide, pega mais uma garrafa pra gente?”. As senhorinhas bebem. E dançam. Sambam. Sapateiam as sandálias e sapatilhas sujas de lama.
Em cima do palco, dona Zefa vê o neto brilhando. Entre os músicos, Joilson dedilha seu cavaquinho e sorri para a avó. Já sabe o que ela quer: Zeca Pagodinho. O grupo manda ver um sucesso do cantor, e a quadra vem abaixo. Dona Zefa sente o calor da multidão, tão forte que a faz perder o ar. Meio tonta, se esforça para respirar, mas tudo fica preto de repente.
Chamadas às pressas por Cleide, Deusilene e Sandra Sílvia levam a avó para o banheiro. Semidesmaiada, Zefa tem as pernas moles. Seu rosto negro está pálido. “Meu Deus, ela vai morrer!”, chora uma, enquanto a outra abana a avó, já sentada numa cadeira. Pequeno e lotado de mulheres, o banheiro enlameado vira um verdadeiro caos. “Bota ela no chuveiro!”, alguém diz. Deusilene e Sandra Sílvia tiram a roupa da pobre velhinha e a colocam sob a água fria.
Chega um médico. “Quem está passando mal aqui?”. As mulheres – muitas estavam ali por pura curiosidade – apontam o box do chuveiro. Mas as netas escandalosas o impedem de ver dona Zefa. “Ela tá pelada, sai daqui!”, diz Sandra Sílvia, batendo a porta na cara do doutor. “Minha senhora, eu preciso examinar sua avó, abre essa porta”. “Pelada, não!”. “Então botem a roupa nela!”.
Alguém tem a feliz idéia de jogar a roupa de dona Zefa por cima da porta. As netas vestem a avó, que já está recobrando os sentidos. O médico finalmente a examina. Recomenda menos agitação, menos cerveja e menos comida gordurosa. Assustada, Zefa faz que sim com a cabeça.
Um mês depois, porém, lá está dona Zefa de novo. Afinal, ela não é mulher de frufrus e floreios. “Desce mais uma pra gente, Creide!”.
terça-feira, março 11, 2008
Na CDD
Na Cidade de Deus, dizia Buscapé no filme, não dá pra saber o que é pior: encarar os bandidos ou a polícia. Semana passada, ninguém passava ali. Todos os acessos à favela estavam fechados pelos hômi. Tiroteio a madrugada toda. Ônibus e carros precisavam fazer a volta pela Barra.
Mas não quero falar disso agora. Prefiro lembrar da feijoada da Graça.
Era uma tarde de sábado quando cheguei naquela ruela de paralelepípedos. Avistei logo uns amigos com uma latinha de cerveja na mão. Graça, a faxineira da academia, me recebeu toda feliz, era inauguração do boteco dela. Minutos depois eu já estava com minha latinha, batendo papo. Um paredão de caixas de som tocava um pagode, ainda lentinho, só cozinhando o pessoal antes de começar a farra pra valer. Mães levaram cadeiras de praia pra calçada e faziam penteados nos cabelos das filhas. Dois amigos meus jogavam sueca com moradores da CDD. Parei pra espiar o jogo, enquanto batia meu pratão de feijoada preparado pela Graça. Um dos moradores, um mudinho cachaceiro, estava dando um sacode nos playboys. A cada vitória, um gole de caninha, que ele comprava com moedas de 10 centavos retiradas de um saco velho de mercado. Ele jogava, ganhava e bebia. Bebia de novo. Mais uma vez. “Por que você não come?”, perguntei. Ele riu, como se dissesse: “Não vou gastar minhas moedas com isso”. Olhei meu pratão de feijoada que eu não conseguia terminar. Ofereci. “Toma. Não consigo mais”. O Mudinho pegou meu prato, e comeu, feliz. Largou da cana pelo menos até terminar a comida. Um pancadão nervoso começou a tocar. Popozudas de shortinho já se posicionaram em frente à parede de som. Funkeira metida à mãe loura desde os tempos de rádio Manchete, resolvi me meter no meio delas. Dancei, balancei meu popô G até o chão. Não me contentei com a dança, comecei a cantar também. Quando percebi, segurava um microfone e puxava um melô qualquer com voz esganiçada. A galera dançava, se divertia com a MC branquela. A feijoada da Graça era um sucesso. Cansei de pagar mico com “as colega” e fui dançar com os amigos da academia. A essa altura, o Mudinho já tinha terminado a feijoada e requebrava na pista de dança – que era o meio da rua mesmo. Um colega dele, que só tinha uma perna, chegou do lado balançando as muletas de madeira carcomida. Começaram a se estranhar. Mudinho versus Perneta. O povo ria com os empurrões que um dava no outro. Botavam pilha nos dois. Mas a briga não passou disso. Logo eles estavam rindo também, embalados pela cana, pela música e pela alegria de estar ali. Alegria que era dos moradores e dos playbas como eu. A feijoada foi até tarde. Graça estava em estado dela mesma, estado de graça. Com perdão do trocadilho.
Depois deste dia, voltei outra vez lá, para um churrasco. Mas isso já é outra história. Desde então, nunca mais vi Graça. Espero que ela esteja bem e que os hômi não tenham mexido com o boteco dela. Quero voltar lá.
Mas não quero falar disso agora. Prefiro lembrar da feijoada da Graça.
Era uma tarde de sábado quando cheguei naquela ruela de paralelepípedos. Avistei logo uns amigos com uma latinha de cerveja na mão. Graça, a faxineira da academia, me recebeu toda feliz, era inauguração do boteco dela. Minutos depois eu já estava com minha latinha, batendo papo. Um paredão de caixas de som tocava um pagode, ainda lentinho, só cozinhando o pessoal antes de começar a farra pra valer. Mães levaram cadeiras de praia pra calçada e faziam penteados nos cabelos das filhas. Dois amigos meus jogavam sueca com moradores da CDD. Parei pra espiar o jogo, enquanto batia meu pratão de feijoada preparado pela Graça. Um dos moradores, um mudinho cachaceiro, estava dando um sacode nos playboys. A cada vitória, um gole de caninha, que ele comprava com moedas de 10 centavos retiradas de um saco velho de mercado. Ele jogava, ganhava e bebia. Bebia de novo. Mais uma vez. “Por que você não come?”, perguntei. Ele riu, como se dissesse: “Não vou gastar minhas moedas com isso”. Olhei meu pratão de feijoada que eu não conseguia terminar. Ofereci. “Toma. Não consigo mais”. O Mudinho pegou meu prato, e comeu, feliz. Largou da cana pelo menos até terminar a comida. Um pancadão nervoso começou a tocar. Popozudas de shortinho já se posicionaram em frente à parede de som. Funkeira metida à mãe loura desde os tempos de rádio Manchete, resolvi me meter no meio delas. Dancei, balancei meu popô G até o chão. Não me contentei com a dança, comecei a cantar também. Quando percebi, segurava um microfone e puxava um melô qualquer com voz esganiçada. A galera dançava, se divertia com a MC branquela. A feijoada da Graça era um sucesso. Cansei de pagar mico com “as colega” e fui dançar com os amigos da academia. A essa altura, o Mudinho já tinha terminado a feijoada e requebrava na pista de dança – que era o meio da rua mesmo. Um colega dele, que só tinha uma perna, chegou do lado balançando as muletas de madeira carcomida. Começaram a se estranhar. Mudinho versus Perneta. O povo ria com os empurrões que um dava no outro. Botavam pilha nos dois. Mas a briga não passou disso. Logo eles estavam rindo também, embalados pela cana, pela música e pela alegria de estar ali. Alegria que era dos moradores e dos playbas como eu. A feijoada foi até tarde. Graça estava em estado dela mesma, estado de graça. Com perdão do trocadilho.
Depois deste dia, voltei outra vez lá, para um churrasco. Mas isso já é outra história. Desde então, nunca mais vi Graça. Espero que ela esteja bem e que os hômi não tenham mexido com o boteco dela. Quero voltar lá.
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