terça-feira, maio 27, 2008

Farsa inútil

Tire-a já da mediocridade, é seu dever salvá-la do óbvio.
Salpique cores no bege que a assola.
Empurre-a para o abismo, pois só colidindo com as pedras ela irá respirar.
É seu dever fazer respiração boca a boca, trazê-la de volta à vida, e não esta farsa inútil.
Da farsa inútil já basta todo o resto.
Se ela merece fugir da angústia acachapante, é seu dever resgatá-la.
Se não merece, deixe-a dormir, então. E não a incomode mais.

quinta-feira, maio 15, 2008

Pequenezas

Dentro da bolsa, o caos. A chave de casa que enrosca no crachá, que prende na pinça, que agarra o elástico de cabelo, que se embola no porta-moedas. É sempre assim: toda vez que vai abrir a porta, ela pega a chave e vem tudo junto. Xinga deus e o mundo, jura que vai separar cada coisa em bolsinhos. Mas, no dia seguinte, é a mesma coisa.

Pior é quando está entrando no ônibus. Seu celular cisma em tocar, e ela, afobada, não sabe se atende o aparelho, se paga a passagem, se segura as várias bolsas que sempre carrega ou se segura a si mesma para não cair, já que os motoristas cariocas estão sempre prontos para tirar o pai da forca.

Sua vida é assim mesmo. Enrolada, complicada, um prato cheio para a hiena Hardy entoar seu famoso bordão. Oh, vida, oh, azar, ela mesma repete, às vezes, ao tropeçar nos buracos das calçadas. Suas pernas são pintadas de manchas roxas, resultado de pancadas dentro do ônibus – os motoristas, sempre eles – ou de manobras radicais que faz para entrar nas kombis. Sempre jura que nunca mais vai entrar nestas latas velhas de sardinha humana. Mas, no dia seguinte, é a mesma coisa. Acaba enrolando-se também com outros passageiros, naquele espreme-espreme dos infernos.

Certo dia, sentada na janela, foi obrigada a dar lugar para uma senhorinha, que tentava subir na kombi com um tabuleiro. “Segura aqui, minha filha. É lasanha. Eu que fiz”. Segurou o tabuleiro quente enquanto a velhinha se sentava no melhor lugar, fazendo-a colar coxas com o motorista (ela odeia colar coxas com desconhecidos). E seguiram assim até ela devolver a lasanha, já que a velhinha folgada queria mesmo é ficar de mãos livres vendo a vista lá fora. Outro dia, teve que ouvir uma ladainha bizarra de mais uma senhora, que contava as aventuras amargas que teve com a patroa. “Falei pra ela: só de raiva vou botar seu nome na minha filha, pra eu nunca mais esquecer da senhora”. E assim a pobre criança foi batizada de Elza, o nome da maior inimiga da mãe.

Enrolada dentro da bolsa, achincalhada nos ônibus e espremida em kombis, ela quer se libertar. As pequenezas da vida a afrontam, atrapalhando o que chama de suas “causas nobres”.

sexta-feira, maio 09, 2008

Ensaio sobre a conjuntivite

1º dia - acorda com os olhos vemelhos. Acha que é uma irritação boba e pinga soro.
2º dia - a irritação piora. Pinga água boricada. No trabalho, tenta entrevistar algumas pessoas, mas sente que está sendo evitada.
3º dia - olho fica mais vermelho e inchado. Médico diz que é uma conjuntivite viral e contagiosa. Ela percebe que é sério quando ele se nega a apertar sua mão.
4º dia - trabalhando de casa para não infectar os colegas, sente que seus pais não querem beijá-la.
5º dia - o namorado não a visita e deseja melhoras através da webcam. Uma secreção começa a escorrer de seus olhos.
6º dia - decide ficar no quarto, afundada nos filmes. Sente tonturas. Fica tocada com a solidariedade da mãe, que começa a deixar a comida sobre a bancada.
7º dia - depois de um cochilo, percebe que fecharam a porta do quarto. Seu corpo está quente. Febre alta. Olha-se no espelho e vê que o outro olho também fora tomado pelo mal. Sofre delírios.
8º dia - dorme o tempo todo, enrolada no cobertor. É um casulo. A secreção dos olhos escorre para todo o corpo. Pensa que seria a secreção metamórfica, moldando-a com o casulo para a nova vida.
9º dia - não se levanta mais para pegar a comida. Se bem que há tempos ninguém deixa nada para ela. Sente a umidade incomodando-a dentro do casulo. Seus ombros doem de tanto ficar deitada. "Deve ser as asas despontando".
10º dia - Surpreende-se com a mãe na cabeceira da cama: "Chega de hibernar". Pega o espelho e aponta para a filha. A conjuntivite tinha sarado. Ela sai debaixo das cobertas, empapadas de suor. Não tem asas nas costas. Suas pernas continuam sendo pernas, e não patas. Vendo que não se transformou em borboleta alguma, dá um beijo na mãe e vai tomar um banho, como um ser humano qualquer.

segunda-feira, maio 05, 2008

Eterno crepúsculo


Esses dias revi "Crepúsculo dos Deuses", um de meus filmes preferidos. Mais uma vez, chorei e me impressionei. Abaixo, segue uma resenha que escrevi sobre o filme em 2004, para o meu finado blog Movieola.

"Dizer que “Crepúsculo dos Deuses”, de Billy Wilder, é uma obra-prima atemporal não é novidade alguma. O filme, de 1949, soa atual até hoje não só pelas imagens bela e cuidadosamente captadas, como pelos seus diálogos vivazes. Mas existe na obra uma beleza escondida, detalhes de making of que lhe dão um toque ainda mais humano. Comecemos primeiro falando do óbvio para depois chegar ao curioso.

“Crepúsculo” impressiona logo na primeira cena, a dos créditos mesmo: a câmera, em movimento, acompanha os carros que seguem para o Sunset Boulevard número 10.000. Os créditos vêm e vão no corre-corre dos veículos, compassados perfeitamente com a música incidental. Quando a câmera entra naquela casa misteriosa, encontramos Joe Gillis (William Holden) morto boiando na piscina. Primeiro, o vemos de cima, junto com policiais e repórteres que se aglomeram. Depois, o toque de gênio: avistamos o corpo de frente, como se estivéssemos mergulhados encarando o defunto, que bóia de boca e olhos abertos. Tal cena hoje em dia pareceria, no máximo, interessante, pois imagens subaquáticas são bastante comuns. Mas no fim dos anos 40 não existia tecnologia suficiente para se filmar dentro d’água, e o diretor Billy Wilder encontrou uma solução perfeita: colocou um espelho no fundo da piscina e captou a imagem refletida por ele. O resultado foi um take perfeito e ousadíssimo para a época.

Outra característica que atesta a atemporalidade do filme são os diálogos. Parece que o protagonista Gillis conversa com sua quase-amante Betty Schaefer (Nancy Olson) em pleno século XXI. O drama vivido por eles é mais que atual: um homem que se vende em troca de dinheiro e de uma vida requintada; uma moça jovem e ambiciosa que sonha com o sucesso profissional e acaba se apaixonando pelo galã marginal. Mais “Julia Roberts”, impossível. Só que numa versão mais inteligente. A única personagem que parece datada, e é assim propositadamente, é a diva do cinema mudo Norma Desmond (Gloria Swanson). Ela contrata o roteirista Gillis para escrever seu novo filme e lhe fazer companhia, mas acaba se apaixonando por ele e tenta comprar seu amor com roupas, dinheiro e jantares. Ao contrário da sagacidade dos personagens de Nancy e Holden, Norma parecia ter saído direto das telas de cinema mudo, pelo seu modo de falar, gesticular e olhar exagerados. Ela já era datada nos idos dos anos 40, uma peça de museu. Ou como dizia Gillis, fazia parte do grupo de bonecos de cera.

É aí que chegamos à parte mais humana do filme. A atuação de Gloria Swanson foi tão real talvez porque ela estivesse representando a si mesma. Assim como Norma, Gloria também era uma diva do cinema mudo esquecida com o surgimento do cinema falado. E seu mordomo no filme, Max, interpretado por Eric Von Stroheim, era um diretor das antigas que havia descoberto Norma no início da carreira. Tal qual aconteceu com Gloria Swanson quando nova. Billy Wilder também teve a delicadeza de colocar na película a atuação pequena, porém marcante do também diretor Cecil B. de Mille, que fez o papel dele mesmo. E as cenas em que Norma foi à Paramount achando que iria estrelar um filme novamente foram feitas no próprio estúdio, no set de filmagens de Sansão e Dalila. Quando a estrela ofuscada recebia mais uma vez o jato dos refletores e todos aqueles funcionários – os mais jovens e os mais velhos, que a conheciam – começaram a aplaudi-la, aquilo não era ficção. As palmas eram reais, e provavelmente a lágrima que marejou os olhos de Norma era na verdade da própria Gloria.

São apenas algumas dentre outras várias curiosidades desta obra, vencedora de três Oscar (roteiro, trilha sonora e direção de arte)."

Filmes bons nunca envelhecem, era o título do antigo texto.