quinta-feira, dezembro 18, 2008

A Rainha Muda

Chamava-se Jeanne. Na verdade era Janete, mas poucos sabiam seu verdadeiro nome. Jeanne sempre foi Jeanne, desde os 15 anos, quando viu “Jules et Jim” pela primeira vez e apaixonou-se por Moreau. Foi morar sozinha num sobrado velho da Lapa e, ainda adolescente, caiu na noite. Batia ponto na Les Mistons e era conhecida como a Rainha Muda. Cheirava a ylang-ylang e Amarula. E só amava de olhos fechados ouvindo Miles Davis. 

Toda noite, obedecia a um ritual próprio, que ficou conhecido e respeitado ao longo dos anos. Aparecia com um vestido de noiva preto, cigarrilha na mão e expressão indecifrável. Pedia um copo de Amarula e sentava-se na mesa 5. Permanecia sozinha por quase uma hora, tomando doses e doses. Ninguém sentava na mesa 5 a não ser que Jeanne chamasse com os olhos. 

Os fregueses, nas mesas em volta, aguardavam o olhar de medusa que iria transformá-los em pedra. E uma vez escolhidos, eles eram abduzidos para sempre, voltando noite após noite, querendo mais. 

No quarto, Miles na vitrola, fumaça de cigarro, cliente gemendo e Jeanne em outro mundo. Estava longe, nas ruas chuvosas de Paris, entediada à espera de qualquer coisa para lhe entreter. Como era doce estar entediada em Paris. 

Mas era Lapa, e os clientes não sabiam onde estava Jeanne. Pouco importava. Apesar de distante, ela também estava ali, dialética, tratando de seus homens como se fossem os primeiros, como uma virgem lânguida que não era há tempos e como Moreau nunca havia sido. Eles eram tudo para ela e ao mesmo tempo ninguém. 

O ylang-ylang da pele e o hálito de Amarula lhe davam certo ar misterioso, um noir saltando-lhe dos olhos. Quem era Jeanne? Os fregueses queriam saber. Eles a idolatravam. Ela não era deste mundo, muitos diziam, Jeanne não pode ser como os outros.

domingo, dezembro 07, 2008

Hoje eu atirei numa pessoa

Hoje eu atirei numa pessoa

Estava úmido, eu lembro, estava frio

Ele era asqueroso e ameaçador

Não lembro de seu rosto nem da voz

Somente do impacto das balas saindo do meu revólver

Foram quatro, talvez cinco

E dos buracos de sangue escorreram filetes

Acho que o matei

Mas sigo sem saber por que atirei

Ele ameaçava alguém que eu gostava

Não lembro de seu rosto nem da voz

Somente que eu amava e por esse amor matava

De súbito, acordei.

terça-feira, dezembro 02, 2008

Preferimos Toddy

A vida tem seus momentos de comercial de margarina, principalmente se o dia está ensolarado e cachorrinhos saltitam nas calçadas. É uma atmosfera especial que não se explica. Simplesmente as pessoas sorriem, as crianças brincam, todos se cumprimentam e parecem emanar uma energia positiva. Aquela música serena, papais e mamães passando manteiga/margarina na torrada. “Ohs” e “Ahs”. Sucrilhos na tigela e lindos mamõezinhos papaya com granola.

Mas dias de comercial de margarina são raros. O mais comum é o maldito cinza sobre as cabeças estressadas, os esbarrões e xingamentos nada amigáveis. Pessoas que gostam de Nescau brigam com os que preferem Toddy. Ninguém diz “bom dia” no elevador. Até os cachorros parecem rosnar, ou então sofrem com o desapego humano pelos seres pulsantes.

Pelo menos hoje o dia amanheceu amarelinho, queimando mansinho, cedinho, cedinho. Deu para colocar a sandália, o vestido e sorrir para o vizinho que abriu a porta ao mesmo tempo. Deu para assobiar até o metrô, feliz, pensando que o amor também adora Toddy. Que bom que preferimos Toddy. Mas em dias de comercial de margarina, também não seria grande problema se alguém pedisse Nescau.