Da janela de sua casa na comunidade, Deusilene via a movimentação dos policiais, os homens de preto subindo pelas ruas, os tanques passando por cima de tudo. Já havia visto cenas de confronto entre “os homens” e os bandidos, mas daquela vez parecia muito mais sério. Deusilene não sentia medo, porém. Seu pensamento estava longe, pousado em Joilson e nos sonhos que tinham pensado juntos. Aquela casa era para ser dos dois, mas só ela morava ali, com todos os móveis comprados por crediário e a TV de plasma que ganhou da tia Graça, aquela que se deu bem e foi viver na Barra. Casa com vista boa, na rua principal, padaria, farmácia, salão de beleza e até lan house. Deusilene gostava de morar ali, apesar dos tiros que pipocavam às vezes.
Mas Joilson, aquele safado, a abandonara depois de se engraçar com uma fulana no orkut. Deusilene descobriu as conversas salientes, e como não é mulher de perdoar traição, mandou o noivo para longe. No entanto, sofria dia e noite com saudade do cheiro de Cashmere Bouquet que ele usava, dos braços fortes que a envolviam, dos momentos românticos a sós em Iguabinha. Que lástima.
Os tiros continuavam pipocando e Deusilene nem pensava em se esconder ou abaixar. Mantinha-se na janela, os olhos fixos no poste envolvido por um emaranhado de fios. “Assim está meu coração”, ela pensou, antes de avistar dona Cremilda quase colocando os bofes para fora. “Sai da janela, Deusilene, vai pra debaixo da mesa”, gritou a senhora, que seguiu subindo a rua em direção ao seu barraco.
Deusilene mal ouviu as palavras da vizinha. Na verdade, um pensamento terrível passou por sua cabeça numa fração de segundo: “E se eu morresse aqui?”. Nada mais fazia sentido para ela, não iria mais mesmo se casar com Joilson, não teriam três filhos com a letra G – Gleyton, Glenda e Gleyce -, não viajariam para a Disney com as crianças – um sonho antigo – e muito menos juntariam dinheiro para morar no Méier. Talvez até seria bom se ela morresse, Joilson ficaria arrasado, e se arrependeria para o resto da vida de tê-la traído com a periguete do orkut. Choraria sem parar no enterro dela, pensaria que nenhuma outra mulher chegaria aos pés dela, cheiraria suas roupas até que não houvesse mais vestígio de Deusilene nelas. “Ele iria ficar um caco”, sorriu, ainda na janela.
Os tiros continuavam. Resolveu que esta era a solução, iria se jogar na frente do caveirão e gritar: “Pode atirar aqui, seu polícia”. Seria o fim de seu tormento e o início do tormento de Joilson, ele iria ficar um caco, pensou mais uma vez. Estava decidida, sairia de cena naquele momento, nada de filhos, de Méier, de Disney, tudo é bobagem, só o que vale é o amor e ela não tinha mais amor algum dentro dela. Um tiro veio em sua direção. Deusilene gritou. Vidros estilhaçados, o sangue escorria pela roupa e ela pensou: “Então é isso. Vou morrer”. Mas Deusilene não queria morrer, ora bolas, ao diabo com Joilson, ela era muito nova para perder a vida ali, e o sem-vergonha que a traiu no orkut continuar vivendo suas saliências. “Socorro!”, ela gritou, sentindo a vista turvar-se, até tudo ficar preto.
Despertou horas depois, em uma cama de hospital. Viu Joilson consternado ao seu lado. “Sua doida, que história é essa de ficar na janela na hora do tiroteio? Quando me ligaram achei que você tinha morrido”. Deusilene se viu invadida novamente pelo amor, olhou aquele homem e nunca o desejou tanto. “Eles conseguiram remover a bala?”, ela perguntou. “Que bala, Deusi? O tiro pegou na sua janela, você só se cortou com o vidro. Ainda bem que tem medo de sangue e desmaiou, porque se continuasse na janela era capaz de levar um pipoco mesmo”. Deusilene era pura felicidade. Não importava mais a traição, a periguete internética, as mentiras. “Te perdoo, Joilson”, ela disse. “Casa comigo, Deusilene”. Ela não titubeou desta vez: “Caso. Mas a lua-de-mel vai ser na Disney”.
No ano seguinte, embarcaram – ela já grávida de Gleyton – para os Estados Unidos.