Cansada depois de um dia de caminhadas sob um sol seco, foi surpreendida pelos australianos, animados como cariocas. Uma volta em Montmartre? Oui, pourquoi pas... Andaram pelas ladeiras de paralelepípedos, comeram crème brûlée no café da Amelie Poulain, fotografaram e filmaram, como bons turistas que eram. Depois de visitarem uma loja de vinhos, cada um saiu com uma garrafa de dois euros na mão. Decidiram beber nas escadarias da Sacre-Coeur, importando-se menos com a arte sacra e mais com a deliciosa sensação de ter Paris aos seus pés. Sentados junto com eles, dezenas de jovens do mundo inteiro conversavam, emanando seus espíritos livres a ponto de dar inveja a Nietzsche. Uma chilena que havia morado em São Paulo. Um cubano tentando ser Che. Italianos, ingleses, americanos, brasileiros, fundindo seus mundos, deglutindo-se uns aos outros, entre goladas de vinho e tragadas entorpecentes.
Foi quando Clive, um simpático gordinho australiano de dentes infantis, aproximou-se e puxou assunto com ela. Começaram falando de vinho, depois de viagens, culturas estrangeiras, pinturas – ele disse que era pintor amador. Sensível e delicado, Clive também escrevia, desenhava e lia, lia muito. Ele falou de Thomas Mann. Ela falou de Gabriel Garcia Márquez e Rubem Fonseca. Trocaram emails, links de blogs. Sentiam-se velhos amigos. Na volta para o albergue, ele a fotografou vendo as estrelas. Sim, ele também fotografava. Dias depois, Clive seguiu para Londres e ela para Veneza. Trocaram alguns emails falando de suas viagens. Ele enviou as fotos do grupo na Torre Eiffel. O último email que ela recebeu dele era enorme, falava de Ingrid Bergman e sua famosa frase em Casablanca: We’ll always have Paris. Por falta de tempo, ela não o respondeu.
Meses depois, recebeu uma mensagem de Andrew, um dos australianos do grupo: Clive havia morrido de pneumonia. Triste, ela chorou toda uma tarde. Resolveu entrar no blog dele, tentando encontrar fotos da Cidade Luz. Seu coração quase parou quando viu, em um dos posts, uma imagem. Era uma pintura dela, sentada na porta do albergue, olhando as estrelas.
terça-feira, fevereiro 26, 2008
sexta-feira, fevereiro 22, 2008
Barbara
Sem saber o motivo, começou a pensar no próprio nome. Barbara. Repetiu-o algumas vezes, estranhando a sonoridade. Barbara. Barbara. “Nome bruto”, pensou. Olhou-se no espelho e encarou a imagem. “Então essa sou eu”. Não se reconheceu. Reparou em cada detalhe do rosto refletido: olhos, nariz, boca. O buraquinho no lado esquerdo da bochecha. Esta pessoa era ela, assim como era ela o nome estranho repetido diversas vezes. Mas nada lhe era familiar, nem o nome, nem a imagem. Em seu mundo interior, Barbara era uma figura sem forma, uma sensação, um buraco negro que ora se esticava, ora se encolhia. Não tinha rosto, muito menos uma palavra que a designasse. Ela era seus sentidos, era o que enxergava, ouvia, pegava, comia e cheirava. O espelho lhe mostrou um ser desconhecido. Um ser chamado Barbara, que, por acaso, ela era mesma. Muito prazer.
quarta-feira, fevereiro 13, 2008
Pequena Miss Sunshine
quinta-feira, fevereiro 07, 2008
Pode ser a gota d'água
Quando o ar lhe pesava, mergulhava a cabeça n’água e via tudo com uma clareza estarrecedora. De repente, tudo fazia sentido, compreendia os pormenores secretos que a atormentavam, olhava de cima para sua própria vida. Como se ela não fosse ela, fosse outra a olhar a vida alheia. Enxergava cada pedaço com frieza médica, juntava os fios soltos, identificava traumas, apontava soluções, percebia os inimigos. Pesava o necessário e o desnecessário, mesmo sabendo que os conceitos de necessidade mudam sempre. Cristalino, cristalino, como nunca pensara nisso antes? O sentido é que não há sentido, somente o objetivo. Viver seguindo o um, sem buscar o outro.
Percebendo-se afogada, chorou. Cada lágrima pode ser a gota d’água. Um dia vai transbordar tudo de uma vez, ela pensa, submergindo a cabeça.
"Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta..."
Olha a gota que falta..."
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