quarta-feira, julho 23, 2008

Procura-se morfina

Ela tem molas que espremem suas entranhas.
Ela tem um animal que corrói o fígado como a ave de Prometeu.
Ela tem agulhas no estômago, alfinetes na vesícula.
Ela tem amarras nas vértebras e hastes cravadas no ouvido.
Ela tem mãos que lhe apertam o coração; sacos plásticos no pulmão.
Tudo nela dói, desde o mindinho do pé ao último neurônio do cérebro.
Mas, como toda mulher, suporta as dores.
Aprendeu a conviver com elas, se bem que anda um tanto farta.
Procurou marceneiros, veterinários, costureiros, marinheiros.
Ninguém conseguiu libertá-la dos objetos de tortura.
Dizem que continua vagando. Buscando, talvez, um farmacêutico que lhe dê injeções de morfina.

quinta-feira, julho 17, 2008

Remorso

Saiu da festa transtornado, álcool no sangue e remorso no peito. Pegou o carro feito doido que nem viu. Aquela maldita, por que ela fez isso, ele estava tão bem. Mas acabou deixando a festa alucinado, tão doído ele estava que pegou a estrada febril. O cachorro veio distraído, cachorro bobo, de família. Freou com força, mas era tarde. Sentiu o baque, o carro passou em cima do bichinho. Que merda, ele chorou. "Matei o cachorro, sou um criminoso, sou um assassino". Tão transtornado ele estava quando saiu da festa, aquela putinha tanto fez que o levou para o banheiro. Sorte que ele despertou antes do fim, mas foi o suficiente pra sentir culpa, ele tinha tanto amor e não era por aquela vagabunda. Cheio de remorso, pegou o carro, e aí veio o cachorro, por que aquele bicho atravessou a rua justo naquela hora? Bandido, matou um cachorro e traiu a mulher, no mesmo dia, na mesma noite. Estacionou o carro no acostamento, pegou o animal no colo. Estava inerte, não se mexia, ele o havia matado, assim como matou o respeito pela mulher, tudo por uma desfrutável que não valia um centavo. Aquele cachorro era ele mesmo, morto por um carro desgovernado, morto pelo inesperado, pela vagabunda insaciável. Resolveu enterrar com o cão aquela noite inútil, o sentimento doloroso foi junto para a cova, feita sob lágrimas no matagal ao lado de casa.

terça-feira, julho 15, 2008

14 latão

Terminal Rodoviário Menezes Cortes, centro do Rio. Uma bêbada entra no banheiro e pede a uma sóbria que está ali para segurar a porta, que não tem trinco.

Bêbada: Segura pra mim. Esse banheiro dá muito tarado.

Sem alternativa, a sóbria segura a porta imunda.

Bêbada: Colega, tô bebinha...Também, desde 7 horas da manhã no goró!

São cinco da tarde.

Sóbria: Você tá bebendo há dez horas??

Bêbada: É que eu trabalho na barraca ali na frente.

Sóbria: De bebida?

Bêbada: Não, de doce. Mas tem a barraca do lado, né? Aí eu vendo um pouquinho, bebo um pouquinho... Só hoje foram 14 latão e 3 quente!

Sóbria: Mentira!

Bêbada: Verdade! Te juro pra você.

A bêbada dá a descarga.

Sóbria: Se eu bebo 14 latões, saio carregada. É muita coisa!

Bêbada: Ah, que isso... 14 latão tu num guenta? Nem 14 latinha?

Sóbria: Nem latão nem latinha.

Bêbada abre a porta da cabine.

Bêbada: Tu é fraca, hein, colega!

Sóbria: Tu que é sinistra, colega...

Bêbada: É só beber coca-cola e chupar muita bala.

Sóbria: E engov? Sonrisal?

Bêbada: Isso é balela, minha filha. Tem que botar é açúcar no sangue. Depois chega em casa e dá um trato no marido.

Sóbria: Ele não reclama não?

Bêbada: Reclamar de quê? Tô botando dinheiro em casa. Ai dele se der um ai.

Sóbria: Tá certa... Bem, vou lá!

Bêbada: Valeu, colega! Vai treinando em casa que tu consegue. Depois vem aqui competir comigo.

A bêbada ri, sabendo que aquela sobriazinha fajuta nunca seria páreo para ela.

Sóbria: Ah, pode deixar. Quando eu fizer 14 latões, falo contigo.

Bêbada: Aí vai ser tarde demais. Essa noite eu chego nos 20.

A sóbria acha graça e trata de sair dali. Pega um frescão de 6 reais. A bêbada volta para a barraquinha de doces, onde segue rumo aos 20 latões.

sexta-feira, julho 11, 2008

O grito de Joana

O. fez um esforço tão grande para abrir os olhos. Pareciam colados, como se há muito não ousassem piscar. Puxou pela memória e não se lembrou da última cena que viu antes de sentir as pálpebras descerem seu pano preto, indicando o fim do espetáculo. O. sentia que, se quisesse, poderia abrir os olhos de novo. Mas o grito de Joana ecoou em seus ouvidos como aviso, era um grito sem nexo e gutural, mas ele o ouviu como prenúncio. Fazia tempo que aquele grito havia saído da boca de Joana, mas, O. sabia bem, vozes são eternas, repetem-se exaustivamente na cabeça de quem tapa com as mãos os ouvidos.

"Não abra os olhos", era o significado daquele grito, vindo daquela Joaninha espevitada que voejou-lhe a vida por muitos anos e agora vinha pousar-lhe no nariz. Mas O. tinha os olhos fechados há muito, tanto que nem lembrava o porquê. Ignorou o ruído joanístico e de um só lampejo, escancarou os olhos até quase enroscarem-se cílios e sobrancelhas.

Neste exato momento entendeu o desespero de Joana, ela gritou faz tanto, mas o tempo passou e a voz dela tinha razão. Assombrado com o que viu, O. sentiu a vista turvar-se de lágrimas, até que fechou os olhos. Desta vez, por tempo indeterminado e por escolha própria: nunca mais iria enxergar, fosse o que fosse. Joana estava certa. "Matenha-os fechados. Mantenha-se são". Era o que dizia para O., que a obedecia cegamente, em pleonasmo.

domingo, julho 06, 2008

Pi-pi-pi-pi!

Começou numa noite qualquer. O barulho do videogame indicava que o vizinho tinha ganho um brinquedinho novo. Novo entre aspas. Era brinquedo velho mesmo, pois o som era de Atari. Vanderson conhecia muito bem aqueles ruídos que remetiam à sua infância. Divertiu-se muito com eles, mas ouvi-los aos 30 e poucos anos, na hora de dormir, era um pé-no-saco. Pi-pi-pi-pi! Vanderson tapava a cabeça com o travesseiro. O vizinho estava jogando River Raid. Aquele do avião, sabe? E o pior é que o vizinho batia toda hora. Só de ouvir o barulho, Vanderson conseguia vizualizar o percurso. Desvios, tiros nos inimigos, fuel. Que suplício era o fuel. Pi-pi-pi-pi! "Burro!", pensava Vanderson, cada vez que o vizinho batia na ponte. Começou a chamá-lo de "O barbeiro do Atari".

As noites se seguiram e o barbeiro continuou com suas manobras. O vizinho jogava Enduro, Pitfall, Space Invaders. Vanderson não conseguia controlar a própria mente e jogava contra o adversário no maravilhoso mundo de sua imaginação. Os barulhinhos viraram uma psicose, ia deitar esperando os ruídos começarem. Preferia o River Raid por conta do barulho do fuel, ou até mesmo o Enduro, pois o ronco contínuo do carrinho de corrida o fazia dormir como um anjo. Vibrou quando o barbeiro do Atari investiu no jogo do ladrãozinho.

Meses se passaram e aquela rotina noturna se repetiu.

Numa noite, entretanto, não houve barulho. Vanderson rolou na cama, virou de um lado e do outro, até chegar à triste conclusão: estava viciado no Atari do vizinho. Precisava do pi-pi-pi, das explosões, dos barulhos de tiro. Maldito! Que fazia o vizinho que não estava mais jogando videogame? Vanderson resolveu bater em sua porta após uma semana de insônia. Ninguém atendeu, então deixou um bilhete. "Caro vizinho do 506, Já leu o Pequeno Príncipe? Tu és responsável por aquilo que cativas! Se não for pedir muito, por favor, volte às noites de Atari. Muito agradecido. Vanderson do 507." A noite seguinte foi de ansiedade. Será que o amigo desconhecido resolveria o problema? Mas nada aconteceu. Vanderson ouviu somente um barulho de cama batendo na parede. E não dormiu, mais uma vez.

No dia seguinte, ao pegar o jornal embaixo do tapete, deparou-se com um pacote. Preso a ele, um bilhete: "Caro Vanderson do 507. É com prazer que venho lhe informar que minha vida mudou. Arranjei uma namorada. Não preciso mais do Atari. Se você sente tanto a falta do videogame, aqui está. É meu presente para você. Aproveite." Vanderson sorriu. Seus problemas estavam resolvidos. Mas entrou em pânico ao deitar-se. Se jogasse o videogame, não dormiria. Se não jogasse, não ouviria os tão esperados ruídos, e também não dormiria. Concluiu que seu destino deveria ser o mesmo do vizinho. Precisava arranjar uma namorada.

Ela, sim, poderia brincar com o Atari e fazê-lo dormir como um anjo novamente.

terça-feira, julho 01, 2008

Na noite do tango

Na noite do tango, estrelas de cartolina caíram sobre suas cabeças. Ela estava um tanto nostálgica, ouvindo as declamações portenhas ao som tão familiar do bandoneón.
Na noite do tango, ele estava distante, pensamento longe ou perto dali, tomando devagar sua cerveja de rótulo doce e sabor amargo.
Na noite do tango, ela chorou com as canções de amores, de passado, de saudades. Olhou para ele, que não estava ali, e sentiu medo do futuro.
Na noite do tango, ele despertou com as lágrimas dela e enxugou-as uma a uma. Beijou, cuidou, acalmou, fazendo-a sentir-se tranqüila outra vez.
Na noite do tango, ele e ela se encontraram novamente, perdendo-se juntos sob as estrelas de cartolina.